Reportagem publicada originalmente no site Amazônia Real, produzida pela repórter Nicoly Ambrósio*
Pousadas, piscinas e estruturas turísticas de pesca estão sendo erguidas sobre sítios arqueológicos e locais sagrados do povo indígena Wajuru, em Rondônia. O território, de ocupação tradicional indígena e quilombola, está há mais de duas décadas em processo de demarcação, mas segue sem proteção.
O avanço de construções irregulares acontece em uma área onde foram identificados pelo menos três sítios arqueológicos no distrito de Rolim de Moura do Guaporé, localizado no município de Alta Floresta d’Oeste. No último dia 11 de junho, a Defensoria Pública da União (DPU) teve de enviar um ofício à Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Rondônia, informando que lideranças indígenas denunciaram a construção de estruturas turísticas sobre áreas arqueológicas em seu território. O órgão pediu intervenção urgente por haver ameaça direta ao patrimônio arqueológico do povo tradicional.

Segundo a DPU, apesar de o Iphan ser obrigado a realizar o salvamento de sítios arqueológicos na região e manter vigilância para impedir novas construções, a determinação não está sendo cumprida. “Até o presente momento, não se tem notícia de vigilância efetiva no local, o que pode estar contribuindo para o avanço de obras que comprometem o patrimônio arqueológico e cultural da região”, destacou o defensor público federal Thiago Roberto Mioto, responsável pelo ofício.
Mesmo com o pedido formal, Najela Wajuru, liderança do povo Wajuru, afirma que a realidade para o seu povo não mudou. “A invasão está a todo vapor. Agora estão invadindo até a beira dos rios com barcos flutuantes. Essas pessoas que vêm destruindo nunca responderam por nada”, disse em entrevista à Amazônia Real. A liderança também denunciou o avanço de uma lógica de especulação e privatização do território, promovida por empresários, religiosos, fazendeiros, autoridades locais e setores ligados ao turismo.
“Dentro do meu território tem uma milícia muito grande e as coisas vêm sendo abafadas. Aqui tem um turismo predatório muito incentivado pela prefeitura de Alta Floresta, pelo governo do Estado de Rondônia e pelo setor de turismo. As pessoas vêm, invadem, constroem. Às vezes, compram terrenos de terceiros e pagam caro num pedaço de terra para construir pousada, sabendo que não podem escavar, mas eles escavam”, afirma.
Nos sítios arqueológicos destruídos por conta das construções, foram encontrados potes cerâmicos com ossadas humanas, além de desenhos ancestrais com significado único para o povo Wajuru. A violência da destruição também é psicológica. “Hoje estou em tratamento contra depressão. Outras mulheres do meu território também passam pelo mesmo. Nós estamos na fronteira com a Bolívia e a nossa realidade é de aliciamento para a prostitução, para as drogas”, contou Najela Wajuru.
Para o povo Wajuru, a demarcação é uma questão de existência e o território é como se fosse um documento de identidade ou uma certidão de nascimento, se comparado com os costumes dos não-indígenas. “Nossos parentes estão enterrados ali, nosso sangue está ali, nós crescemos ali”, explicou. Segundo Najela, a ausência do título formal é usada como justificativa para invasão e negação de direitos básicos, como educação e saúde de qualidade.
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Apesar dos embargos do Iphan, os invasores insistem. “Depois de pronto, ninguém derruba”, protestou a liderança indígena. Um posto da Polícia Ambiental de Porto Rolim e a sede do Instituto de Defesa Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia (Idaron), voltada para a pecuária, também foram erguidos na área. “Esse posto da Polícia Ambiental foi construído em cima do nosso cemitério”, denunciou Najela Wajuru.
A liderança Wajuru afirmou que, enquanto lideranças vivem sob escolta, os invasores seguem impunes. “Temos uma cacique que está no programa de proteção dos direitos humanos. Olha que absurdo. Uma mulher, liderança indígena, avó, mãe sendo privada dentro do seu próprio território. Ela tem que sair escoltada enquanto os bandidos estão soltos”.

Em 2020 o Ministério Público Federal em Rondônia (MPF-RO) já havia movido uma ação civil pública para obrigar a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a União a concluírem os processos administrativos tanto da terra indígena, cuja reivindicação remonta a 2002, quanto do território quilombola, que teve processo instaurado em 2017.
Mas os processos de demarcação, até agora, não passaram da etapa em que são feitos os estudos técnicos para delimitação das áreas. Em 2017, a Funai anunciou o início do processo fundiário do território Wajuru, mas que também não foi concluído.
O MPF-RO alegou que a demora em demarcar os territórios têm agravado os riscos de conflitos que giram em torno de interesse econômico, sobretudo do turismo de pesca. A ação resultou em uma sentença parcialmente favorável, que impôs uma série de medidas para proteção do patrimônio arqueológico em Alta Floresta d’Oeste.
A Justiça determinou que o Iphan promovesse a realização de pesquisas e o salvamento dos artefatos arqueológicos. Além disso, o Iphan e o Estado de Rondônia foram condenados, de forma solidária, a manter vigilância sobre os sítios arqueológicos para impedir novas construções em áreas ainda não ocupadas, até que o resgate arqueológico seja concluído.
As “casas de veraneio”, construídas por pessoas vindas do Sudeste do País, se multiplicaram nos últimos anos, segundo Najela. A destruição se alastra até pela beira dos rios, que já estão cheios de barcos flutuantes. Por causa da gasolina e do óleo despejados na água, os peixes estão contaminados. “Vai tudo para dentro do rio. A gente acha um absurdo isso, tanta invasão, tanta destruição dentro do território e na beira dos rios. É cheio de barro”, protestou.
Um estudo da Universidade Federal de Rondônia (Unir) constatou que, pela falta de saneamento básico, os poços do território estão, possivelmente, com altos índices de contaminação, acarretando problemas de saúde à população. “Na época da chuva, dá muita febre, dá muita diarreia nas crianças. Não é que a gente não tenha falado, nós não somos ouvidos”, disse a liderança.
O turismo desordenado tem gerado a constante produção e despejo de lixo por parte de visitantes, pousadas e barcos-hotéis, além da queima irregular de resíduos. Ainda de acordo com a liderança, turistas promovem a caça ilegal de animais e há registros de graves violações de direitos humanos, por conta do aliciamento de mulheres indígenas para exploração sexual.
“Eles também têm o hábito de matar jacaré, tirar só o rabo. Outro impacto é o aliciamento para a prostituição. É muito homem que vai para o território, bêbados. Eles bebem demais. Era para a prefeitura vir notificar, fiscalizar, só que na prática não acontece. Uma coisa é o juiz determinar. Outra coisa é na prática”, afirmou.
“A gente se sente abandonado por todos os órgãos. Chega a dar até uma certa revolta de saber que existem essas instituições para proteger nossos direitos, mas são as primeiras a se calar, a nos silenciar. Porque, a partir do momento que a gente mostra foto, vídeo, pede socorro, e uma autoridade vira as costas para a gente, o que a gente pensa?”, desabafou Najela Wajuru.

O incentivo ao turismo de pesca é conhecido desde 2020 na região de Porto Rolim. E um dos maiores incentivadores é o governo de Rondônia, que segue investindo na expansão do turismo de pesca esportiva na região. No dia 20 de setembro de 2024, a Rede Brasileira de Certificação, Pesquisa e Inovação (RBCIP), contratada pelo próprio governo estadual, realizou um workshop em Alta Floresta d’Oeste para a realização de estudos e a proposição de um Plano de Desenvolvimento do Turismo de Pesca Esportiva do Estado de Rondônia.
A iniciativa abrangeu outros municípios como Pimenteiras, Costa Marques, São Francisco e Porto Velho, capital do Estado. No convite distribuído à população local, o governo afirma que a proposta visa “assegurar a prática sustentável da pesca esportiva e o fortalecimento do turismo local”.
Para o povo Wajuru, a contradição entre o discurso oficial e a prática cotidiana é gritante. Enquanto o governador de Rondônia, Marcos Rocha (União), esteve na COP28, em Dubai, buscando investidores para explorar o potencial turístico do Estado, os indígenas lutavam contra a destruição do território.
“Esse é o nosso pedido de socorro para dar visibilidade. Esses absurdos estão acontecendo em Rondônia. Quando se discute uma COP e o governador do nosso Estado se deu ao trabalho de ir até Dubai falar, aí você se depara com a realidade daqui e é totalmente diferente”, disse Najela.
Ela criticou o silêncio das instituições públicas diante das violações, mesmo quando há provas concretas. “Existe um conjunto de órgãos que era para estarem preservando. Mas não precisava a gente chegar a esse limite. Nós estamos chegando porque não aguentamos mais. Estamos com uma nova poluição. Essas pousadas além delas poluírem, destruírem, elas não dão serviço para gente. Eu mesma não consigo fazer uma diária dentro do meu território”, lamentou.
Segundo a liderança, faltam recursos até para manter projetos já consolidados, como a preservação de quelônios no território. Os Wajuru carecem de barco e combustível. Sem emprego, dinheiro ou autonomia econômica, a liderança relatou que, este ano, ela e seus parentes saíram de suas terras para trabalhar na colheita de café em outras regiões.
“Aqui em Rondônia, essa temporada, você apanha muito café. A gente conversa com alguns sitiantes antes, faz uma comprinha todo mundo do coletivo e vem trabalhar fora do território, porque a liderança que luta pela demarcação não recebe serviço aqui. Nós estamos em uma situação de extrema vulnerabilidade”, ressaltou.
O que dizem as autoridades
A reportagem solicitou posicionamento da Superintendência do Iphan em Rondônia, da Funai, do MPF, da DPU, da Prefeitura de Alta Floresta d’Oeste e do Governo de Rondônia.
Até o fechamento desta reportagem, apenas a Prefeitura de Alta Floresta d’oeste respondeu, por meio de uma breve nota. Segundo o gabinete do prefeito Gio Damo (União), “o Município vem realizando fiscalização junto ao perímetro do Distrito de Porto Rolim de Moura do Guaporé no combate a construções irregulares” e afirmou não ter conhecimento de novas edificações no local. A gestão municipal acrescentou ainda que “intensificará a fiscalização para combater as eventuais irregularidades de construções sem autorização”.