Por Marco Rocha*
Sim, estamos falando sobre a descriminalização do uso de uma planta em 2024, século XXI. Uma planta que, segundos registros históricos, vem sendo utilizada pela humanidade há 10 mil anos. Porém, a pouco mais de um século resolveram que essa espécie vegetal, que atende pela alcunha de maconha, cânhamo, marijuana ou Cannabis sativa L, é mortífera demais para viver em liberdade. Só esqueceram de contar que a criminalização que tornou essa planta a fora da lei do reino vegetal, jamais teve nenhuma relação com seus efeitos biológicos. E eu posso provar.
O uso da maconha como fonte de produtos naturais variados, faz parte do cotidiano humano há milênios. Então, por que apenas no último século, o uso dessa planta foi proibido em praticamente todos os países? Precisamos voltar a história para respondermos a essa pergunta. No final do século XIX, nasce nos EUA um descontentamento por parte dos cristãos protestantes, fundamentalistas, brancos e ricos,
com o uso da maconha, especialmente por conta das comunidades que faziam uso recreativo da erva: negros e mexicanos. Porém, até então, não havia nada que pudesse dar suporte a proibição do uso de maconha por quem quer que fosse, a não ser que isso fosse criminalizado.
E para que isso fosse possível, seria necessário colocar um criminoso na cena. Dessa forma, fakenews foram produzidas pelos jornais da época, relacionando o cometimento de crimes aos usuários de maconha. E claro, criando o pânico social ao afirmar que a juventude seria destruída pelo uso de tal planta. E assim, na década de 1920, nascia a política antidrogas nos EUA. Mas há muito mais por trás dessa manobra política. Havia muitos interesses na produção de tecido sintético a partir da cadeia
produtiva do petróleo, como o nylon, além da produção de tecido a partir da fibra de algodão.
E, no caminho desses interesses, estava a produção de fibra têxtil a partir do cânhamo (maconha). Nada como a velha tática de desqualificar, difamar e criminalizar para tornar algo legal, de uso tradicional em um crime hediondo. E essa tática logo foi disseminada pelos EUA para a Europa e América Latina. O que contribuiu muito para a interferência desse país no mundo. Os americanos se livraram dos mexicanos, os
europeus de seus imigrantes e o Brasil, dos negros. Pelo menos era o que eles achavam que ia acontecer.
As boticas, ou farmácias do Rio de Janeiro, até o início do século XX, vendiam extratos de Cannabis sativa sem maiores problemas. Uma vez que as propriedades medicinais dessa planta eram muito conhecidas, como ações, analgésicas, antiinflamatórias e calmantes. Porém, é a partir da década de 1930 que o Estado inicia uma guerra as drogas promulgando a Lei anti-tóxicos em 1938, com a expectativa de erradicar completamente o uso da maconha, uma vez que, segundo o governo e a polícia, usuários da erva eram criminosos em potencial. Agora adivinhem qual a parcela da população tornou-se alvo das prisões…Agora o Estado tinha mais um motivo para começar o projeto de encarceramento em massa de pretos, pobres e periféricos.
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Reparem, em que momento deste texto foram citadas referências de que a maconha é, de fato, um agente farmacológico que promove riscos irreversíveis a vida do usuário ou de sua comunidade? A ciência já demonstrou com centenas de dados robustos que não há nada nesta planta que justifique uma política de repressão como a que vem dominando o mundo por quase cem anos. Ao contrário. Muito do que foi dito sobre a maconha “queimar neurônios”, ser a “porta de entrada para drogas pesadas”, incitar a violência, entre outras informações, não passa de fakenews.
Dados da OMS mostram que a indústria do tabaco mata 8 milhões de pessoas/ano no mundo. O álcool é 144 vezes mais deletério para o organismo que a maconha e que seu uso é responsável por quase 40% dos acidentes de trânsito que provocam mortes ou lesões permanentes. Quantas pessoas morrem pelo uso sistemático da maconha? Não há registros. As mortes violentas são provocadas pela política antidrogas equivocada dos governos e suas forças policiais e que seguem mirando no mesmo público. O maior contingente de usuários de maconha para uso recreativo encontra-se na população jovem, branca, de classe média e que vivem em áreas mais privilegiadas. Esses, em caso de flagrante, sempre serão estudantes e usuários, enquanto jovens pretos, pobres e de periferia, sempre serão traficantes, independente da quantidade que portam.
O que o STF tenta fazer desde 2015, é tentar erradicar essa disparidade na aplicação da lei das drogas de 2006. Por que a população com as mesmas características segue sendo encarcerada em massa, enquanto jovens brancos e ricos continuam a consumir maconha em bares, praias ou caminhando pelas ruas, seguem livres e distantes dos rigores da lei? Não estamos mais em 1930 e já passou da hora de dar um fim a essa desgraça social, que destrói famílias, sonhos e futuros de jovens pretos nesse país.
Seguir demonizando o uso da maconha só serve a fundamentalistas religiosos, a polícia repressora, a uma política ultrapassada e, claro, a quem realmente lucra com essa insana e incompetente “guerra as drogas”.
*Marco Rocha é biólogo, professor, palestrante, comunicador e pesquisador com mestrado em Biologia celular (Fiocruz), Doutorado em Biotecnologia Vegetal (UFRJ e University of Ottawa/Canadá), com Pós-doutorado em Plantas medicinais com atividade antiviral (Fiocruz), com dezenas de artigos e capítulos de livros publicados em literatura científica. Professor universitário a mais de vinte anos, atuando nos cursos da área de saúde das universidades públicas (UFF e UFRJ) e nas principais universidades privadas do Rio de Janeiro. Marco Rocha também é ator, escritor, comunicador e administra as mídias sociais @aquipensando01 onde promove divulgação científica, reflexões sobre o cotidiano, discussões sobre etarismo e ativismo antirracista. Autor dos livros @aquipensando01 – coleção instapoetas e co-autor do livro Pretagonismos.