Por Amazônia Real – Direito de Reprodução Concedido
Choveu bem menos do que o esperado em algumas regiões amazônicas e a seca se prolongou para além do previsto em outras. O resultado é um número de queimadas sem precedentes na Amazônia para os cinco primeiros meses deste ano. É mais uma marca histórica nos incêndios florestais que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) vem registrando desde 1985. Num claro sinal de que a crise climática veio para ficar, é o maior número de queimadas para um início de ano desde a criação do Monitor de Fogo do Mapbiomas em 2019, muito acima do valor médio de focos registrados pelo Inpe em 35 anos e ainda, o maior índice da história para fevereiro.
Falar de fogo para esse período conhecido como chuvoso em grande parte da Amazônia parece um contrassenso. Foi, afinal, o imenso volume de água suspensa da floresta tropical que acabou migrando para a região Sul brasileira, potencializando as trágicas enchentes do Rio Grande do Sul. Mas é enganoso acreditar que a região Norte seja uniforme e tenha o mesmo clima. Roraima concentrou o maior número de focos de incêndio de janeiro a maio (4.623), destaque negativo entre os nove Estados da Amazônia Legal. Desta vez, contudo, queimou demais.
“As chuvas que normalmente ocorrem no início de março começaram no final desse mês para abril. O fato de o período seco ter se estendido contribuiu para que tivesse mais fogo”, explica Ane Alencar, diretora do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam) e coordenadora da rede colaborativa Mapbiomas Fogo. Os dados do Sistema de Monitoramento BD Queimadas do Inpe indicam que outros dois Estados amazônicos, Mato Grosso (3.829 focos) e Pará (1.269), também extrapolaram os incêndios florestais na série histórica. A pesquisadora vê mais indícios perigosos nesses números:
“O que chama atenção é o Mato Grosso, que tem começado a disputar com focos de calor”, adianta ela, acrescentando que essas queimadas não deveriam estar ocorrendo simplesmente porque abril ainda é um período de chuvas fortes nesse Estado e nesta época. “No caso do Mato Grosso, seria uma estação seca antecipada que pode gerar mais oportunidades para atividades como desmatamento.”
A pesquisadora do Ipam lembra que o Mato Grosso, que faz parte da Amazônia Legal, possui uma floresta de transição e as queimadas favorecem o processo de avanço da fronteira agrícola rumo ao norte. “O desmatamento é feito muito com correntão, aquele formato de leiras. Isso permite com que a vegetação também seque mais rápido e que o fogo aconteça mais próximo do processo de enleiramento”, explica.
Em seus 5 milhões de quilômetros quadrados, a Amazônia Legal possui diferentes ciclos de queimadas. No “calendário do fogo”, os focos começam em junho no sul da Amazônia e na região do Mato Grosso. Nos meses seguintes e até setembro, quando ocorre o período de pico, as queimadas se estendem para outras regiões. Quanto mais perto do fim do ano, mais o foco do fogo sobe para o norte do Brasil até findar em Roraima.
Anomalia em Roraima
Segundo levantamento da Amazônia Real no BD Queimadas, Roraima chegou a aumentar em até nove vezes o número de focos de calor nos últimos quatro anos, entre os meses de janeiro a maio. Em 2021, haviam sido registrados 517 focos, subindo para 618 no ano seguinte e 1.258 registros em 2023. Do último ano para cá, os 4.623 focos de 2024 significam um aumento de quase quatro vezes em relação ao ano anterior.
“Houve uma anomalia de foco de calor no início de 2024 em Roraima e não só nos meses de janeiro e fevereiro, mas também e principalmente no mês de março. Foi essa anomalia que levou Roraima a bater todos os recordes de atividade de fogo neste ano”, acrescenta a pesquisadora.
O chamado “inverno amazônico” ocorre geralmente entre novembro e junho na maior parte da Amazônia, o que causa mais surpresas diante do recorde de queimadas deste ano. Esse “inverno” é conhecido pela elevação da umidade, reduzindo um pouco as temperaturas – mas longe de se parecer com o tempo frio que ocorre nas regiões Sul e Sudeste entre julho e agosto.
Para o bioma Amazônia, a plataforma BD Queimadas, no Satélite de Referência, apresentou 10.647 focos de calor de janeiro a maio, mais que o dobro dos 5.269 registrados em igual período do ano passado.
A intensidade da seca histórica trouxe consequências prejudiciais para o ciclo natural da Amazônia e a razão é simples de entender: as chuvas não estão sendo suficientes para reabastecer o lençol freático, o que acende um sinal de alerta para Ane Alencar. “Vejo com muita preocupação a estação seca de 2024 na Amazônia, porque justamente a gente ainda vai sentir o impacto do que foi 2023 e do que foi o período chuvoso deste 2024, que não foi suficiente para realmente recarregar e ter um efeito para reduzir o estresse que foi deixado como herança do El Niño”, explica a cientista.
Desmatamento em queda
Ironicamente, o fogo está aumentando na Amazônia bem no momento em que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anuncia a queda do desmatamento. Conforme o Relatório Anual do Desmatamento (RAD) 2023, o corte florestal teve uma redução drástica de 62,2% nesse terceiro mandato do governo Lula. De 2022 a 2023, a redução foi de 21,8%. O único Estado em que o desmate aumentou foi o Amapá (27%). Na Amacro (Amazonas, Acre e Rondônia), chamado de “nova frente do desmatamento”, houve uma queda de 74%.
Segundo Luciana Gatti, coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Inpe, comparado ao governo de Jair Bolsonaro (PL) os números de Lula são “comemoráveis”, mas não deixam de ser exorbitantes. Sob Bolsonaro, as maiores taxas foram de 13.038 (2021) e 11.594 quilômetros quadrados (2022) de destruição da Amazônia. Com Lula, esse patamar caiu para quatro dígitos: 9.064 quilômetros quadrados, uma redução de 62,2%. “Se a gente pegar o desmatamento, o governo Lula ainda está acima do desmatamento do governo (Michel) Temer. Isso não é o suficiente”, afirma.
Luciana diz acreditar que para chegar próximo ao patamar de 2012, quando o sistema Prodes registrou o menor desmatamento da história, é preciso fazer muito mais por conta do enfraquecimento dos órgãos ambientais e da presença de criminosos que passaram a encarar a Amazônia como lucrativa. “Essa turma descobriu que vender madeira e grilar terra dá mais dinheiro e tem menos risco do que mexer com droga, então hoje é muito mais difícil combater o desmatamento e o legado de Bolsonaro é muito pior do que a gente imagina”, diz.
A Amazônia queima mais fácil?
Conhecida por ser quente e úmida, a floresta amazônica está mais “receptível” ao fogo em 2024, dizem os cientistas. Mas o aquecimento global não é o único responsável. A mão humana dá a sua cota de colaboração. “A Amazônia fica mais inflamável [com os eventos climáticos intensos], só que para que o fogo ocorra alguém tem que incendiar. Então a Amazônia vai queimar mais e mais fácil se as duas coisas estiverem acontecendo”, conta Ane Alencar.
“Quando eu falo de condições climáticas, são muitos dias sem chuva, uma umidade do ar mais seca e altas temperaturas. Essas coisas favorecem que essas condições de espalhamento do fogo tenham uma preponderância e Influenciem bastante na inflamabilidade dessa paisagem”, explica a cientista do Inpe.
A Amazônia ainda absorve mais carbono do que emite, porém a quantidade encontrada em excesso na atmosfera vem das atividades humanas que ultrapassam a capacidade da floresta de absorver o composto químico. Devido ao desmatamento, a região do Mato Grosso e o sul do Pará são os lugares na Amazônia com maior déficit de vapor de água na atmosfera.
Como consequência, a temperatura sobe. “Só para você ter uma ideia, nos meses de agosto e setembro a temperatura aumentou, nos últimos 40 anos, 3,1 graus Celsius”, ressalta Luciana Gatti. “É muita coisa e faz com que a floresta passe por um estresse climático muito grande ao ponto de hoje, no sudeste da Amazônia, a floresta estar mais morrendo do que crescendo.”
A autodestruição do agro
De acordo com Luciana Gatti, os efeitos gerais dessa fragilização da região amazônica implicam em menos chuva, temperaturas mais elevadas, vulnerabilidade da floresta à queimada e, ao fim, a própria falência do agronegócio. “O agro está cavando o colapso da agricultura no Brasil. Ele não olha que a floresta é nossa grande fábrica de chuva, o nosso grande controlador de clima. Ao destruir a floresta, o agro está perdendo a condição climática para continuar produtivo”, lembra a pesquisadora do Inpe.
Desde 2000, quando o monitoramento de área para pastagem da plataforma Mapbiomas Brasil começou, mais de 1 bilhão de hectares foram transformados em pasto só na Amazônia. A maior área desmatada para criação de gado na Amazônia Legal vem do último registro feito em 2022: 57.507.124 de hectares de terra.
A pesquisadora acredita que a sociedade brasileira não pode continuar pagando a conta pela “única” forma de fazer dinheiro encontrada pela “turma do agro”, com a intensa exportação de carne, já que grande parte não abastece o mercado brasileiro. O que ela defende é que se discuta se esse modelo econômico é benéfico no médio e longo prazo.
“Esse é o agronegócio brasileiro que quer transformar o Brasil na fazenda do planeta e é exatamente esse o motivo de ter a catástrofe que a gente acabou de observar depois de um curto período de tempo no Rio Grande do Sul”, lembra Gatti. Ela faz questão de frisar que muitos podem apontar, de forma equivocada, que em 1941 houve uma grande enchente no Estado gaúcho, portanto seria um evento que ocorreria de tempos em tempos. “Mas está tendo todo ano e tem a ver com o desmatamento na Amazônia e em todos os outros biomas”, ressalta.
A boiada do Congresso
“Hoje, infelizmente você tem uma máquina de destruir floresta, de destruir meio ambiente no Brasil, que é o Congresso Nacional. Trabalham dia e noite para que situações como as do Rio Grande do Sul se repitam e piorem. Parece que aprendem pouco ou nada”, alega Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. Oito dos 25 projetos de lei contrários à proteção ambiental avançaram em tramitação durante a tragédia climática do Rio Grande do Sul.
Atuando na frente contra pautas anti-ambientais, Márcio explica que, além dos 25 projetos de lei no Congresso, existem centenas aguardando um avanço. “Vinte desses projetos são os que estão ali na boca do caixa para serem aprovados. Infelizmente nós temos isso hoje no Brasil”, diz.
Astrini ressalta o papel fundamental da sociedade para evitar que o ruim fique ainda pior. Ele afirma que os investimentos do governo federal chegam a ser até maiores na mitigação dos impactos, com resultados menores do que há dez anos. “Cada centavo que gasta no combate, na mitigação, são milhões que você economiza na adaptação”, frisa.
Para evitar o “passar da boiada”, Márcio entende que os últimos resultados das mudanças climáticas são o alerta necessário para encarar e rever processos no Brasil. “Pode ser que a gente tenha também que rever, entender o tempo de atuação das brigadas, nós vamos ter uma prova agora com a temporada do fogo chegando na Amazônia”.
O que dizem os governos
Já preocupado com o que virá, o governo do Amazonas lançou de forma antecipada, no início deste mês, a Operação Aceiro 2024, com cerca de 300 agentes entre bombeiros, brigadistas e homens da Força Nacional para 12 municípios do sul do Estado e região metropolitana de Manaus. Em 2023, os amazonenses viveram cobertos por fumaça tóxica durante três meses, um drama que atingiu grande parte dos 62 municípios do Amazonas.
À Amazônia Real, a Secretaria de Comunicação do Amazonas (Secom/AM) informou que está fazendo aquisição de novas viaturas e equipamentos operacionais, tendo investido 13 milhões de reais até o momento. Segundo resposta enviada, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) formalizou a entrega à Defesa Civil de 10 sensores de monitoramento da Qualidade do Ar no último dia 5, para os municípios de ação prioritária: Autazes, Careiro Castanho, Manaquiri, Urucará, Maués, Boca do Acre, Lábrea, Manicoré, Novo Aripuanã e Apuí.
“A proposta é que o Amazonas instale sensores em todos os 62 municípios, realizando o monitoramento da poluição atmosférica em 100% do território amazonense, sobretudo, durante o período da estiagem. O objetivo maior é que os dados ajudem na construção de protocolos de ação em casos de fumaça”, diz texto enviado pela Secom.
Outra ação do governo foi lançar a operação Tamoiotatá em 30 de abril. “A ação é realizada em todo o Sul do Estado e tem como objetivo atuar na repressão de crimes ambientais, uma vez que a área concentra cerca de 85% dos crimes de desmatamento e queimadas”, diz a nota enviada.
No Mato Grosso, onde os focos de calor já estão em alta no Programa de Monitoramento do Inpe, o governo informou que ampliou o período proibitivo do uso do fogo na Amazônia entre 1° de julho e 30 de novembro e possui pacto interfederativo firmado com o governo federal, Mato Grosso do Sul e os demais Estados da Amazônia, como também um protocolo com a Associação Mato-grossense de Municípios (AMM) para a prevenção e combate de incêndios florestais.
“Além disso, militares do Corpo de Bombeiros foram capacitados para fazerem queimas prescritas no Estado. A queima prescrita diminui a quantidade de material combustível e evita que o incêndio florestal se propague”, afirmou a Secom do Estado do Mato Grosso à Amazônia Real. Com relação à atuação na temporada de combate às queimadas em 2024, o governo respondeu que “já realiza a capacitação de brigadistas civis e militares em todo o Estado”.
Por uso irregular do fogo, o Corpo de Bombeiros já aplicou 39,5 milhões de reais em multas. “Importante destacar que os números de focos de calor registrados no Estado não são os números absolutos de incêndios florestais. Os focos são, na verdade, pontos detectados pelos satélites com temperatura acima de 47º C, lembrando que Mato Grosso é um dos estados mais quentes do país”, acrescentou a Secom.
A Amazônia Real também procurou as assessorias do Estado de Roraima e do Pará, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
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