Na última década, os preconceitos publicados nos livros de Monteiro Lobato foram debatidos e questionados. Coincidência ou não, no mesmo ano em que um Governo “conservador” assume o comando do país, as obras do escritor paulista entram em domínio público. Isso significa que qualquer editora poderá publicar as histórias do autor, sem obrigação de responder à Lei de Direitos Autorais. Também será possível fazer obras, desenhos, peças de teatro, etc.
Os debates em torno das obras de Monteiro Lobato e sua utilização em escolas públicas começaram em outubro de 2010, quando parecer aprovado por unanimidade pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) recomendava que “Caçadas de Pedrinho” fosse distribuído às escolas públicas com nota explicativa sobre a presença de estereótipos raciais. O livro de 1933 utiliza termos como “macaca de carvão” e “carne preta”, ditos pela personagem e pelo próprio autor para falar sobre Tia Nastácia, a sempre dócil negra que cuida de todos sem se revoltar. Na época, o então ministro da Educação, Fernando Haddad, rejeitou o parecer.
Para a socióloga Luciana Bento, idealizadora do projeto Quilombo Literário, a utilização destas obras nas escolas reforça as posições preconceituosas da sociedade brasileira: “Essas obras racistas já são um desserviço há muitos anos nas escolas, porque nunca deixaram de ser adotadas. As crianças, brancas e negras, continuam tendo acesso a obras que animalizam as personagens negras, como a Tia Anastácia e o Tio Barnabé. Sempre tratados com desrespeito, constantemente comparados a animais e desvalorizados na história. E isso raramente é problematizado. O argumento mais utilizado é que “no tempo de Lobato era assim,” mas estamos lendo e relendo nos dias de hoje, é uma forma sutil de reforçar posições racistas que são intrínsecas da sociedade brasileira”, explica.
Uma das obras mais conhecidas do autor é o Sítio do ‘Picapau Amarelo’, onde personagens usam expressões preconceituosas quando se referem aos personagens negros. Em ‘Reinações de Narizinho’, Tia Nastácia é apresentada da seguinte forma pela personagem principal: “Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura”.
Além de suas famosas histórias infantis, Monteiro Lobato escrevia ficções e era um grande entusiasta da eugenia, um tipo de seleção de humanos “bem-nascidos” ou uma escolha de características superiores para a evolução da espécie. Em 2011 se tornou pública uma carta do escritor enviada a Arthur Neiva, em 10 de abril de 1928, publicada na revista Bravo! (maio de 2011) e reproduzida pela Carta Capital. No texto, vemos que o escritor defendia a Ku Klux Klan, uma organização racista secreta que nasceu no final do século 19 nos Estados Unidos:
País de mestiços, onde branco não tem força para organizar uma Kux-Klan (sic), é país perdido para altos destinos […] Um dia se fará justiça ao Ku-Klux-Klan; tivéssemos aí uma defesa desta ordem, que mantém o negro em seu lugar, e estaríamos hoje livres da peste da imprensa carioca — mulatinho fazendo jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva” – Monteiro Lobato.
A socióloga Luciana Bento explica que no contexto político atual, a reedição das obras de Lobato dialoga com essa guinada conservadora: “Uma das bandeiras do novo governo é o combate ao ‘politicamente correto’. Ou seja, até mesmo a crítica ao racismo explícito na obra e na vida de Lobato é desvalorizada neste cenário em que se retomam valores e posturas que só beneficiam uma pequena parcela da população, que detém o poder e se beneficia do racismo estrutural. Então, se a gente já enfrenta uma enorme barreira em diminuir o uso e a divulgação da obra de Lobato pelo seu viés racista, agora com as obras em domínio público e a grande oferta no mercado editorial, será ainda mais difícil”.