Indígenas do Acre são acusados pela mortandade dos peixes

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Por Amazônia Real

Além de estar entre os que mais sofrem com a seca histórica, o povo Huni Kuin teve de ouvir de não-indígenas que eles teriam envenenado a água do rio Breu, no sudoeste do EstadoNa foto acima estiagem do rio Juruá na cidade de Marechal Thaumaturgo

No município de Marechal Thaumaturgo (AC), os Huni Kuin vivem duas ameaças ao mesmo tempo. A primeira é a falta d’água, já que o rio Breu é atingido com as altas temperaturas e com o assoreamento, o que tem provocado uma mortandade dos peixes. É difícil beber dela agora. A segunda é ter de provar o improvável. Os indígenas, que com os Ashaninka dividem essa larga extensão territorial do Alto Juruá, chegaram a ser acusados de terem envenenado a água para matar os peixes, como conta a liderança Fernando Huni Kuin, presidente da Associação Castinal do Rio Breu.

“A gente valoriza a nossa cultura. Nunca colocamos veneno no rio que sempre preservamos”, defende-se a liderança Huni Kuin. Morador da Aldeia Vida Nova, da Terra Indígena Ashaninka-Kaxinawa, Fernando lembra que o peixe é sagrado para os povos originários. “Todo mundo tem que comer,  índigena e não-indígena. Os brancos ficaram culpando nós, mas não é assim. Isso é a quentura do rio mesmo que está matando os peixes.”

Neste ano, os Huni Kuin plantaram legumes e frutas nas praias que se formam na beira do rio Breu. Havia melancia, amendoim e milho, alimentos que fazem parte da dieta da comunidade. Mas boa parte dessa produção não resistiu às altas temperaturas e à falta d’água. Se a estiagem persistir, ninguém tem mais certeza se restará alguma comida plantada.

Ao longo de 2023, muitas fazendas queimaram, algumas por mais de duas semanas consecutivas. A grande nuvem de fumaça foi inalada pelos povos originários e o calor aumentou como poucas vezes foi visto em tempos recentes. “Não sei bem explicar o nome científico, né? Sei o nome próprio: ‘seca’. Ela começou quando o capim secou, as folhas secaram e sentimos quando queimou quase toda a floresta”, lamenta a liderança indígena Huni Kuin.

Na primeira semana do mês de outubro, uma equipe de saúde foi até a região do   Envira, em Feijó, para resgatar uma criança com diarreia e  uma mulher grávida que precisava de assistência com a ajuda de um helicóptero. Todos foram salvos.Também, já há relatos de casos de desnutrição, uma preocupação crescente para os agentes sanitários.

Foto: Alexandre Cruz Noronha/Sema AC

O coordenador-índigena regional Isaac Pyãnco disse à Amazônia Real que a forte estiagem tem prejudicado o atendimento local dos pacientes, sobretudo por causa dificuldade de acesso. Tornou-se, assim, impossível precisar o quantitativo de pessoas doentes, mas, segundo Pyãnco, os atendimentos urgentes são, em sua maioria, de crianças pequenas.

seca histórica se espalha por outras áreas do Acre, como na TI Igarapé do Caucho, no município de Tarauacá,  em que os poços artesianos e cacimbas já dão sinais de estarem secando. Cerca de 34 aldeias enfrentam a falta de água potável. Os pontos mais  críticos identificados por  o cacique Antônio Huni Kuin  e também assessor da Saúde Indígena do Distrito Alto Juruá são: TI Rio Humaitá, as TI do Igarapé do Caucho, Praia do Carapanã, TI do rio Gregório ,TI Rio Tauari, TI índigena primavera e TI colônia 27. Segundo o representante, a assistência para os  moradores dos arredores tem sido complexa. Prestar ajuda pelo rio Gregório, por exemplo, se tornou uma luta pela sobrevivência. “A população indígena está passando por um aperreio muito difícil, os olhos d’água tudo secaram”, diz Antônio Huni Kuin.

Para poder chegar nas aldeias, é preciso montar estratégias para que o barco não fique encalhado no meio do caminho. Em Marechal Thaumaturgo, além de empurrar a embarcação, algumas vezes se faz necessário carregá-lo para chegar até o local do atendimento de saúde. No Jordão, as equipes levam, além dos medicamentos e instrumentos de saúde, ferramentas para cortar os troncos que encontram pelo caminho.

A situação é a mesma para se chegar de barco às comunidades do Alto Envira em Feijó. A região também foi duramente afetada pela seca. Agora, o processo de deslocamento de barco leva agora cerca de 12 a 15 dias de  preparo dependendo da localização – antes, o percurso era alcançado em torno de 2 dias. Em muitos trechos do rio Gregório, não é mais possível navegar de barco, tampouco escoar a produção. Poucas aldeias têm água potável. E a maioria necessita de um sistema que atenda às comunidades em momentos de crise como o atual. “É isso que a gente está querendo, ver o que nossas autoridades competentes e o que nosso distrito está fazendo  por nós”, afirma o cacique Antônio Huni Kuin .

Um pedido de ajuda

Seca do rio Breu em 2009 também foi grande (Reprodução Flickr/Vihh)

No dia 5 de outubro, lideranças indígenas procuraram o governo estadual para pedir ajuda. Se o Acre passa agora pela maior seca dos últimos 40 anos, no início deste ano a população enfrentou uma das maiores enchentes de sua história. Na manhã seguinte, o governador Gladson Cameli publicou no Diário Oficial do Estado o Decreto 11.338, que reconhece a situação de emergência. Não é apenas em decorrência da extrema seca já vivenciada, mas da possibilidade real de haver um desabastecimento generalizado de água. O decreto vale pelos próximos três meses, até janeiro, quando é previsto o fim da estiagem.

No decreto estadual, o governo de Gladson Cameli (Progressistas) esclarece que levou em conta o regime de chuvas no Acre do primeiro semestre,  já abaixo da média. Reconhece-se que há riscos de municípios e aldeias indígenas ficarem isoladas por causa da falta de navegabilidade dos rios, de desabastecimento de medicamentos e itens de saúde nos hospitais e postos médicos dos municípios afetados.

Segundo a Secretaria de Povos Indígenas (SPI), as TIs com maior risco de vulnerabilidade por causa da seca histórica no Acre, são Ashaninka-Madija (do Alto Envira, em Feijó), Kaxinawa-Ashaninka (do Rio Breu, em Marechal Thaumaturgo), Huni Kuin – Kaxinawa e Madija (ambas do Alto Rio Purus, em Santa Rosa do Purus), Katukita Kaxinawa (em Feijó), e Kaxinawa do Alto Baixo Seringal Independência (do rio Jordão, em Jordão).

Plano emergencial

No sábado (7), o governo estadual realizou uma reunião emergencial para discutir como lidar com os impactos da seca. Os gestores participantes e a secretária dos Povos Indígenas (Sepi), Francisca Arara, assumiram o compromisso de elaborar um plano emergencial para o Acre. 

Francisca Arara informou à Amazônia Real que já está em contato com as lideranças indígenas, pedindo que elaborem uma lista de demandas. “A gente está mapeando  as principais necessidades de emergencial, ou seja, o que é urgente que o governo pode estar levando como água cesta básica, kit de higiene e rede colchão para os casais”, disse. 

A secretária afirmou que o governo estadual trabalha em um plano de adaptação de mudanças climáticas para os povos indígenas do Acre. Ainda sem data para ser concluído, o plano deve prever recursos que funcionem para cada período climático, na seca ou na cheia dos rios. Embora afirme que as TIs mais afetadas e já em situação de vulnerabilidade terão prioridade de atendimento, o governo não divulgou até agora quanto será destinado para enfrentar a seca, tampouco o valor a ser destinado apenas para a população índigena.

Ações humanas, como queimadas, degradação ambiental, desmatamento frenético e até a falta de políticas públicas ambientais e climáticas  eficazes, têm feito a Amazônia demonstrar sua fragilidade diante desse extremo climático. Para o professor da Universidade Federal do Estado do Acre (Ufac) Alexsande Franco, a tendência é de que a ação do fenômeno El Niño se intensifique no ano que vem e perdure até 2026. E explica que é necessário refletir sobre o momento atual de forma social e governamental para que a população indígena não fique desassistida.

“O que a gente tem feito com relação a isso? É uma pergunta importante de ser feita e ser destacada porque os órgãos reguladores têm um papel fundamental na ação”, questiona sobre a falta de fomento em políticas públicas. “Podemos fazer muito, como recuperar as nascentes, as fontes e protegê-las, além de  recuperar as APPS – Áreas de Proteção Permanentes. Todo esse processo perpassa pelas questões de adaptação e de mitigação climática”, aconselha o professor da Ufac.

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