Por Lourence Cristine Alves*
Desde o início da pandemia, o arroz tem sido “envolvido” em polêmicas. A primeira vez foi pela alta nos preços e, a questão agora, é a qualidade de um subproduto do arroz, conhecido como fragmento de arroz, quirera ou quirela de arroz. O fragmento de arroz (ou quirera) voltou a ser vendido em alguns lugares do Brasil, num valor mais baixo que o arroz “convencional”, como uma alternativa ao alto custo que o arroz vem apresentando na atualidade. A partir disso, surgiram algumas postagens nas redes problematizando o consumo desse arroz. Na maioria dos textos, dois argumentos ganham destaque: a informação de que o produto teria um valor nutricional menor e a de que o produto na verdade seria um tipo de “ração animal”. Aliás, você conhece, já comeu ou ouviu falar de fragmentos ou quirera de arroz? Então, antes de avançarmos nesse papo, já vou adiantando que não é bem assim.
A quirera de arroz NÃO tem um valor nutricional menor que o arroz branco “tradicional”. Isso porque ela nada mais é que o arroz branco fragmentado, quebrado, logo, tem o mesmo valor nutricional que um arroz branco com o grão inteiro. Claro que se compararmos com diferentes espécies de arroz, ou se avaliarmos grãos integrais, aí sim teremos variações nos benefícios nutricionais, como as fibras, por exemplo, nos grãos integrais. A questão aqui é que precisamos ter cuidado com as “generalizações ‘nutricionísticas’” que são disseminadas nas redes sociais.
O nutricionista Thiago Bronze fez uma postagem em suas redes desmistificando essa informação e apresentando a legislação brasileira que regulamenta o produto e sua comercialização, que existe desde a década de 1980. E só mais um destaque, precisamos ter cuidado com a forma de análise de percentuais nutricionais dos alimentos, para não cair no erro de diminuição do valor simbólico que essas comidas têm numa determinada cultura alimentar.
O outro problema do “hype” de postagens sobre o fragmento de arroz, é a associação deste produto com ração animal. A quirera de arroz, assim como a de milho, que, lembrando, são basicamente esses grãos pilados ou mecanicamente fragmentados, compuseram por muitos anos, junto com a farinha de mandioca, insumos basilares na alimentação e sustento de muitos brasileiros. No caso das farinhas de mandioca, apesar dos estigmas “sudestinos”, segue firme e forte até hoje na nossa mesa. Pela glória e honra do Senhor Exu! Mas quando se trata das quireras, elas foram perdendo força e espaço nos mercados ao longo dos anos. Mas por que será!? Retomemos as origens disso tudo para entender os porquês e como acontece essa relação com a ideia de “ração animal”.
Comer grãos fragmentados, em diferentes espessuras (quireras, farinhas, sêmolas) faz parte da cultura alimentar de diversos povos africanos e esses hábitos foram ressignificados nos diferentes territórios coloniais da diáspora africana. Caso você não saiba, o pilão é uma invenção negro africana de suma importância na tecnologia alimentar de diversos povos da África. Sua tecnologia ancestral, assim como outras, faz parte desse grande assentamento que é a diáspora africana nas Américas. A escravização europeia de negros africanos promoveu um processo de desumanização destas pessoas, que passaram a ser vistas como mercadorias, e animalizadas. Os principais produtos destinados à alimentação dos escravizados, nos diferentes territórios brasileiros, foram milhos, mandiocas e arrozes. As quireras são um dos subprodutos possíveis dos milhos e arrozes. Aqui destaco uma coisa, estamos falando de tecnologias aplicadas sobre grãos que possibilitam a confecção de diferentes produtos e TODOS tinham algum uso alimentício. Sabe porque!? Para esses povos, a versatilidade e a integralidade do consumo são tônicas basilares de suas culturas alimentares.
Chamo atenção ainda para o fato, de suma importância, de que os saberes em torno do processamento destes grãos é PRETO. Brancos eram donos da propriedade, mas não executavam, nem dominavam essa sapiência. Não havia trainee ou tutorial de como arar a terra, colher e ou processar alimentos. Assim, precisamos reconhecer que os saberes em torno da agricultura brasileira são heranças das tecnologias africanas e ameríndias. A pesquisadora norte americana Judith Carney mostra que os negros africanos foram os primeiros sujeitos nas américas com conhecimento sobre técnicas agrícolas de cultivo e processamento do arroz. Em suas pesquisas ela mostra como o arroz já era cultivado na Costa Oeste africana, antes da chegada dos europeus e antes da introdução de espécies de arroz nativas do continente asiático. Segundo ela, a colonização se beneficia desse conhecimento técnico, mas “embranquece” o tipo de arroz, o original africano era mais avermelhado. No documentário “Da África aos EUA”, produzido pela Netflix, é mostrada uma queda de 80% da produção do Golden Rice da Carolina do Sul, após o fim da escravização nos EUA. Essa foi uma das regiões que mais prosperou com a comercialização do produto.
Aqui no Brasil, a política agrícola do período militar também “embranqueceu” o arroz, favorecendo a produção do Sul do país e incentivando a substituição de sementes crioulas de arroz por sementes do tipo asiático, que é o arroz branco que mais consumimos. Voltando para o período em que vigorava a escravização de negros africanos, é importante entender que a escolha e designação destas pessas para esse ou aquele posto de trabalho tinha íntima relação com os saberes e atividades agrícolas, mineradores e comerciais da região/etnia de origem dos indivíduos.
Nossas sabedorias, foram e continuam sendo exploradas pela branquitude desde sempre, sem créditos, pagamento ou reparação por isso. Mas voltemos para a quirera. Sim, ela era muito usada na alimentação de pessoas escravizadas. Então se estes sujeitos eram coisificados, animalizados, e esse produto era o que eles comiam, logo, ele pode ser categorizado como ração animal. E de fato o mesmo produto que os escravizados consumiam também era consumido pelo gado, galinhas e porcos. Tá passadahm!?
Então, pega aqui essa visão! A distinção que não havia no imaginário coletivo entre a quirera dada aos porcos e a dada aos negros escravizados, se fez potência justamente na cozinha. Há diversos usos e abusos de sabedorias pretas para produtos como esse. São nossas tecnologias ancestrais, fundamento base da construção da Gastronomia Brasileira. Pois é, a gente não era só um corpinho bonito mexendo colher de pau na cozinha da Casa Grande, não, já era muita cuca no lance e continua sendo. O problema é que a permanência estrutural de uma mentalidade baseada em valores da colonialidade, faz com que esses e outros produtos, que tradicionalmente compõem uma cultura alimentar afro diaspórica, sejam estigmatizados como algo menor. E isso pode acontecer via nutricionismo (na falácia do valor nutricional menor), via elitização do gosto (comida de pobre), ou a atualização do pensamento colonial sobre estes produtos (ração animal). Tudo isso coloca, novamente, nossos comeres num lugar reificado.
Mas porque falar do arroz é tão importante? Primeiramente pela importância nutricional que esse produto tem, a mistura clássica brasileira, arroz e feijão, concentra as chamadas proteínas completas, além de outros componentes nutricionais benéficos para nossa saúde. Segundo, porque o consumo de arroz com feijão é um hábito de nossa cultura alimentar, encontrado em diversas regiões do Brasil. Então é compreensível que, estando tão presente no dia a dia, qualquer coisa que o envolva, cause polêmicas.
A questão que te convido a refletir aqui é que, algumas vezes, centrar o problema no produto desvia o foco do problema de fato. Hoje, podemos dizer que o grande problema não é o arroz, seja ele caro ou fragmentado, mas a crise de abastecimento e a epidemia de insegurança alimentar e nutricional gravíssima que vivemos. O relatório da Rede PENSSAN do ano de 2020, constatou que 19,1 milhões de brasileiros vivem com um grau de insegurança alimentar grave. A insegurança alimentar na Pandemia chegou a atingir 116,8 milhões de brasileiros do total de 211,7 milhões.
Então, convenhamos que o problema não está na quirera de arroz. O problema está na manutenção de uma estrutura e política fundiária embranquecida, colonialista. Ou seja, concentração de terras, investimento e fortalecimento de um modelo de agronegócio, perseguição e ataques a territórios indígenas e quilombolas. Povos tradicionais, ou contra coloniais, ou não brancos, tem modelos agrários de confluência com o meio ambiente, de bio interação, como nos explica lindamente o mestre Antônio Nego Bispo. Antes mesmo da criação e uso do conceito de SUSTENTABILIDADE, esses povos já dava “baile” nas formas de plantar, colher, processar, abastecer, and cozinhar. Nossas tecnologias ancestrais, historicamente subjugadas e/ou apropriadas, são o caminho para a virada desse jogo. Airton Krenak já nos deu a planta, “o futuro não está à venda”. Mas vocês não estão preparados para essa conversa não é mesmo!? Tudo bem, a gente espera, só almejamos estarmos vivos para ver isso.
Por hora, deixo um pedido simples, parem de subjugar nossos comeres. A maravilhosa Dona Carmem Virgínia, ícone da nossa culinária, toda quinta-feira ensina no seu IG, prepara receitinhas maravilhosas com o que muitos chamam de “comida de 5ª”. Vamos recalcular a rota dos nossos discursos!? Antes de chamar de absurdo, o consumo de quireras, pé de galinha, miúdos, farinha de mandioca, reconheçamos que o fato desses produtos não fazerem parte de seu cardápio habitual não é por serem ruins, ou de baixo valor nutricional. É porque gosto é uma construção social e, por aqui, permanecemos classificando e hierarquizando comeres, a partir da régua branca de qualidade.
Finalizando o papo, aponto uma última coisa. De forma alguma, esse texto se propõe a romantizar a pobreza, a carestia e o retorno ao consumo de alguns desses alimentos por conta da diminuição do poder de compra do povo. Eu também morro de saudades dos tempos em que podíamos comprar filé mignon. A tônica da problematização posta aqui é a URGÊNCIA em virarmos a chave no olhar etnocêntrico para essas comidas. Segurança alimentar e nutricional é um direito constitucional desde 2010, que não é efetivado por conta do projeto de necropolítica do Estado Brasileiro. Não apenas deste governo, só estamos vivendo uma piora no que sempre foi estruturalmente problemático.
Meu desejo é que todos os brasileiros consigam comer com segurança em quantidade e qualidade adequadas. Espero que quando tudo isso passar, possamos manter ao lado do filé, o coração de boi, os miúdos, a folha de chuchu, a taioba, o maxixe e a quirera ao lado do arroz inteiro. Eu defendo aqui a compreensão e valorização da potência dos comeres pretos e o cuidado na construção dos nossos discursos críticos. Para que juntos possamos atacar o problema e não os sujeitos mais afetados por ele.
*Lourence Cristine Alves é Cozinheira, historiadora, professora de Gastronomia e Nutrição. Doutora em Alimentação Nutrição e Saúde/UERJ. Mestre em História das Ciências e da Saúde/ FIOCRUZ.(Foto: Marina.S.Alves)