Uma pessoa tranquila, de poucas palavras e consciente do valor de seu trabalho. Um Cartola humano é o homem que surge de “Eu sei – As histórias que mais ninguém sabe”, livro escrito pelo professor Percio Mina a partir das memórias de Ronaldo Silva de Oliveira, filho de Cartola e Dona Zica. Com lançamento neste sábado (24/11), a partir das 16h, no estádio Nilton Santos (Engenhão), Zona Norte do Rio de Janeiro-RJ, a narrativa aborda a trajetória do artista a partir do momento em que a segunda esposa entra em sua vida até ele alcançar o sucesso.
“A Dona Zica foi determinante para a carreira do Cartola. Ela impulsionava todas as construções dele: ele era um gênio, mas sua genialidade dependeu que ela realmente buscasse algumas coisas para ele ser reconhecido como veio a ser. O que aparece aqui é o Cartola que ficava feliz com algumas questões da vida, porém também sofria com os problemas e que tinha suas particularidades, como todos nós temos”, analisa o autor, que está publicando seu quarto livro. A produção atual é realizada pela editora Conexão 7.
Pércio Mina, que estuda o sambista e sua arte, destaca este “olhar caseiro” como o principal ativo do texto. Adotado pelo músico a partir de sua união com Euzébia Silva do Nascimento, Ronaldo de Oliveira conviveu com o músico justamente no período em que ele “renasceu” para a cena cultural do Brasil com o Zicartola e a gravação de seus discos, após a fundação da Mangueira e seu “desaparecimento”. Além da lapidação do legado que o perpetuou como um dos grandes nomes da cultura do Brasil, o documento ajuda a observar o cotidiano do artista.
“A gente tem brincado que a obra mostra o Cartola da porta da rua para dentro. A vida boêmia realmente era um traço marcante dos gênios daquele período e ele não fugia dessa situação. Com isso, muitas vezes, eles estiveram ausentes de suas vidas familiares no geral. Mas, no dia a dia, a situação era bem compreendida. Ele era um pai muito rigoroso, desde cedo sempre quis passar para o filho princípios básicos e a preocupação com a escola e o trabalho era muito importante, determinante na relação deles”, resume o professor.
O período de principais dificuldades enfrentados por Cartola em sua vida são anteriores a construção da relação com Zica – é o encontro com ela que o ajuda a se recuperar, posteriormente abrindo portas para o seu reencontro pleno com a arte. No contato com o filho, não deixou transparecer maiores detalhes sobre estes percalços. De qualquer forma, em registros de amigos ou em uma análise do grau de destaque obtido no cânone nacional, percebe-se o impacto da vivência em seu reconhecimento.
“O ator Jorge Coutinho, grande amigo dele, contou que ele uma vez narrou ter ido comprar móveis na antiga Mesbla e, após ter escolhido os produtos, a vendedora perguntou: ‘O seu patrão vem buscar quando?’ Aí, ele respondeu: ‘Não tem patrão, não. São para mim e eu vou pagar à vista’. É o único registro que tenho desta perspectiva. Agora, uma observação minha, não tenho dúvida que se Cartola fosse branco da Zona Sul, com um pai embaixador ou mais abastado, teria o reconhecimento em relação à sua genialidade que teve um Tom Jobim, um Chico Buarque”, afirma o estudioso.
A intimidade revelada gera a publicação de histórias inéditas envolvendo o compositor e mesmo a feitura de algumas de suas músicas. Além disso, seu processo de criação e a sua relação com o destaque popular obtido a partir do final da vida também são temas tratados nestas páginas. Curiosamente, Angenor de Oliveira aparece como um homem de poucas palavras, passando horas em sua cadeira na varanda da casa em Jacarepaguá (Zona Oeste da capital fluminense) pensando na vida.
“Eles conversavam pouco porque o Cartola era muito silencioso, de poucas palavras. Seu processo criativo variava muito. De acordo com seu filho, algumas músicas saíam rápidas, na hora (por exemplo, ouvia alguém no bar, escrevia em um guardanapo, cantarolava e a música saía), enquanto outras levavam bastante tempo, com ele se recolhendo no quarto com seu violão por dias para fazer aquela determinada obra. Ele aproveitou pouco o sucesso, até pelo tempo de carreira, mas tinha noção do que representava”, explica o professor Percio Mina.
Criação de “As rosas não falam”
“Na casa em que moravam Cartola e Dona Zica, cada um cuidava de um lado do canteiro em que mantinham suas plantas. Ali, tudo que o compositor cultivava do seu lado nascia primeiro. Quando foram plantar rosas, as do lado de sua parceira não cresceram, enquanto as suas floresceram muito. Dona Zica, maravilhada, diz pra ele: ‘Que interessante, que rosas bonitas. Queria saber o que será que elas estariam pensando.” Ele respondeu: “Como é que a gente vai saber se as rosas não falam?” E aí ele seguiu para o quarto, voltando horas depois com a música totalmente pronta.” – Percio Mina
Lançamento de “Eu sei – As histórias que mais ninguém sabe”