A vida entre extremos: depois da cheia, ribeirinhos enfrentam a seca no Acre

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Por Amazônia Real – Direito de Reprodução Concedido

Após a segunda maior cheia desde 1971, quando ficou submerso pela sexta vez com a cota acima dos 17 metros, o estado do Acre vive um novo extremo: há semanas o nível das águas do rio Acre encontra-se a poucos centímetros da menor cota já registrada. A seca faz com que os 22 municípios do estado estejam em situação de emergência, decretada no dia 16 pelo governo federal. 

Na quinta-feira (22), segundo o Boletim da Defesa Civil do Acre, o rio chegou a apenas 11 centímetros da menor cota já registrada na história do estado, quando atingiu 1,25 metro, em 2022. Em Brasileia, a 200 km de Rio Branco, a capital do Acre, o rio chegou a 73 centímetros e ficou três dias seguidos com o menor índice já registrado na história. Na mesma cidade, em fevereiro deste ano, o rio alcançou a maior cota da história e 80% do município ficou inundado. 

Em junho, poucos meses após a cheia, o rio já se encontrava abaixo dos dois metros. É um ritmo difícil de ser acompanhado pelos ribeirinhos. Em Cruzeiro do Sul, segundo maior município do Acre, a pescadora Cintia Andrade não reconhece mais o clima local e estranha as mudanças do rio. 

A seca que afeta o fornecimento de água em Rio Branco (Foto: Marcos Vicentti/Secom-AC).

“O clima, a seca, a cheia, tudo mudou e mudou de uma forma muito forte. Claro que já faz muitos anos que a gente vê essa diferença, mas hoje é imensa, você não atravessava o rio andando, agora você atravessa o rio andando”, 

Moradora da comunidade Olivença, Cintia vive a rotina de precisar se adaptar aos eventos extremos.

“A seca aqui na minha região está muito forte, cada ano vai ficando mais forte. Tem parte na região do rio que você atravessa andando, não molha a cabeça, vai de um lado para o outro andando”, diz. “A gente não tem muito o que fazer, é conviver com o que temos”, desabafa. 

Além de pescar, Cintia pratica a agricultura de subsistência e faz parte da Colônia Z-1, a mais antiga do estado. A comunidade dela fica no Alto Rio Juruá, um dos afluentes localizados no estado. 

“Tem sido muito forte passar por tudo isso porque no inverno, quando está tudo alagado, a gente tem que se virar para subir as coisas dentro das casas. Antes a gente não precisava fazer isso. E, no verão seco, a gente tem que descer”. 

Segundo a pescadora, a seca é mais desafiadora e solitária, pois os órgãos públicos não dão o mesmo suporte oferecido durante os períodos de cheia. “A gente não vê assistência dos órgãos federais. Eles até aparecem no inverno com ajuda básica, com cestas básicas e água. Claro que não supre todo o tempo, mas pelo menos eles se manifestam”.

Outras dificuldades são o ar poluído, que provoca problemas respiratórios, e a falta de acesso à água. Recentemente, a comunidade Olivença passou a ter poço, uma realidade que ainda não chegou em outras áreas do Juruá.

Além disso, os moradores precisam de mais estrutura em relação ao atendimento médico, pois a seca extrema aumenta os problemas de saúde e é comum os vizinhos ficarem doentes ao mesmo tempo. 

Fim da pesca? 

No meio dos extremos, pescadores e agricultores precisam sobreviver e levar renda para casa. Com a imprevisibilidade gerada pela intensidade das secas e das cheias, fica cada vez mais difícil pescar e plantar. O percurso para buscar o peixe pode levar até 40 dias. “Algumas semanas pescando e mais de mês para voltar”, relata Cintia, que pratica a pesca artesanal. 

Faltam políticas para controle de preços e isso, junto com o desaparecimento de espécies, diminui a margem de lucro dos pescadores. Os peixes que os moradores conseguem pescar perto da comunidade servem apenas para subsistência, por serem pequenos

Os pescadores contratados como mão de obra em barcos maiores seguem em direção ao rio Amazonas e, quando voltam, recebem o suficiente apenas para comprar comida. 

“A pesca não suprime todas as necessidades, é preciso também buscar outra renda e muitas pessoas não têm conhecimento, estudo para conseguir um outro trabalho”, afirma Cintia. 

Ela recebe R$ 700 do programa Bolsa Família. Com a pesca, consegue de R$ 100 a R$ 400 reais, dependendo do mês. O único período com renda garantida da pesca é na chegada da piracema, que dura de um a três meses. 

“Os atravessadores, marreteiros, pagam pouco para o pescador e vendem caro para o consumidor. Falta um espaço próprio para os pescadores venderem seus próprios peixes”, reclama. 

O impacto na agricultura 

Anderson Andrade, também morador da comunidade Olivença, já abriu mão de ser pescador profissional pela falta de retorno.  Atualmente, a renda que ele consegue vem da horta que planta e revende no centro do município Cruzeiro do Sul. A situação fica ainda mais difícil com o sol intenso e a seca.

“A gente planta o pouco que consegue, aí os raios solares queimam muito as flores,  as folhas, esquentam muito a terra, podem maltratar a verdura e a gente fica prejudicado”, relata. 

Anderson compara a situação com a de outros anos e afirma que o clima era mais propício para a plantação anteriormente. “Parece até que o sol baixou mais”, diz. Com as cheias e secas extremas, ele segue o ritmo do rio cada vez mais imprevisível, com cheias prolongadas, um verão por vezes mais curto ou mais estendido. 

Ele e a esposa recebem R$ 600 do Bolsa-Família e a plantação vem como complemento, rendendo cerca de R 300. Quando consegue pescar para vender, ele geralmente obtém R$ 100 por semana.

Sem seguro-defeso

Os pescadores da Colônia Z-1 enfrentam um desafio que agrava ainda mais o cenário e tem deixado os ribeirinhos em situação de vulnerabilidade social e econômica: cerca de 521 pescadores aguardam desde 2021 uma carteira da profissão que permite o pagamento do seguro-defeso, no valor de um salário mínimo, para assegurar a renda no período de reprodução dos peixes e seca. A Colônia Z-1, que existe desde 1977, possui 1.800 pescadores.

A negligência e a falta de resposta dos órgãos públicos fez a colônia divulgar uma carta-aberta solicitando que ainda nesta estiagem a Superintendência Federal da Pesca e Aquicultura do Estado do Acre dê uma resposta às pescadoras e aos pescadores da colônia. 

“A demora na emissão desses documentos, que em alguns casos se estende por até três anos, é inaceitável. A carteira de pescador não é apenas um registro, é a chave para o acesso a direitos previdenciários e a garantia de dignidade para os pescadores e suas famílias. Instamos as autoridades competentes a agirem com a máxima urgência na liberação das carteiras de pescador já solicitadas”, diz a carta-aberta.

No dia 9 de julho, o defensor público João Augusto Câmara da Silveira, da 1ª Defensoria Cível de Cruzeiro do Sul, emitiu um ofício a respeito da ausência de deferimento e de resposta no prazo legal aos 521 requerimentos de inscrição no Registro Geral da Atividade Pesqueira -RGP e da concessão de Licença de Pescador e Pescadora Profissional Artesanal. 

O documento, de número 371/2024, ressalta que a legislação dá um prazo de 60 dias para o deferimento ou indeferimento das solicitações, podendo ser prorrogado uma vez por igual período. Diz ainda que a superintendência descumpre o prazo legal. O ofício deu um prazo de cinco dias para o superintendente Paulo Ximenes dar um parecer a respeito dos requerimentos pendentes e estipular um prazo para análise dos pedidos, o que não foi cumprido até o momento.

Procurado pela Amazônia Real, o superintendente Paulo Ximenes  não retornou e não deu um posicionamento a respeito das previsões para deferir a solicitação dos pescadores. 

Itamar Silva, presidente da Colônia Z-1, explica que apesar de algumas carteiras terem sido reenviadas para análise por erros, não existe um parecer do que está acontecendo. 

“O que está impedindo, a gente não sabe. A gente vê que é uma clara violação dos princípios da administração pública, violação dos princípios da legalidade, da eficiência, da impessoalidade, da moralidade, transparência, a gente vê que é uma violação. Não tem uma informação oficial por parte desses órgãos”, afirma. 

Segundo a liderança, a Colônia encontrou uma solução temporária para que os pescadores recebam seguro-defeso mesmo sem a carteira. É preciso entrar com recurso na Justiça Federal por meio de uma Ação Civil Pública, mas nem todos os pescadores conseguem receber por meio dessa estratégia.

Conforme Itamar, a falta de políticas públicas agrava os impactos na sobrevivência e atrapalha a governabilidade da colônia e a emancipação e garantia de direitos dentro da lei. 

“Alguns falam de desistir. Que não dá certo, que vão continuar pescando assim mesmo, sujeitos a passar por fiscalização e ter seus materiais e produção apreendidos”, diz.

Cintia Andrade é uma das pescadoras que não receberam o seguro-defeso. Ela deu entrada no ano passado, recebeu a carteira, mas não conseguiu receber sob a alegação de que o documento tem erros. 

“Além do desrespeito de não imprimirem as carteiras, não passarem a solicitação das pessoas adiante, eles ainda não fazem um trabalho bem feito, fazem com problema. Então, quando a gente vai dar entrada no nosso defeso, não é aceito, não dá certo, como foi o meu caso. Paguei todas as mensalidades e fiz todo o protocolo do seguro e esperei o prazo do sistema. Quando chegou, foi negado”, diz. 

Ela acredita que o estado não leva a sério e não conhece o real trabalho de uma pescadora, as dificuldades e problemas que a profissão sem regulamentação gera. 

“Eles não fazem nem ideia do que é um pescador artesanal, eu acho que eles pensam que você pega peixe e coloca enfeite. Eles não fazem a mínima ideia do que que é. Por não terem conhecimento, não dão valor, não dão a mínima importância se fulano vai receber ou não vai receber a carteira”, conclui a pescadora.

Crise climática e as políticas públicas 

Lucena Rocha Virgilio, especialista em peixes e conservação dos recursos hídricos e professora da Universidade Federal do Acre (Ufac), faz um alerta sobre a falta de políticas públicas como agravante para a crise climática no Acre. 

Há 10 anos estudando a região, ela aponta que é necessário uma atenção especial para as políticas da pesca, caso contrário os problemas existentes devem ficar mais intensos nos próximos anos, com risco de desaparecimento total do pescado, um peixe apreciado no comércio do Acre.

“As mudanças climáticas influenciam na redução dos estoques pesqueiros, porque em períodos mais secos a gente tem uma redução grande do estoque pesqueiro de peixes de categoria primária [comercial]”, explica.

Outro problema levantado pela pesquisadora e pelos pescadores entrevistados pela Amazônia Real diz respeito ao fato do período de defeso não condizer com a realidade. Lucena afirma que não há um estudo sobre o ciclo de reprodução dos peixes específico para a região. 

“Falta aqui também legislação referente à pesca. Tem muita coisa subentendida e falta fiscalização”, afirma.

A pescadora Cintia Andrade confirma a situação.  “Na hora que a lei permite pescar, é difícil achar o peixe; e na época de achar o peixe, a lei proíbe pescar. Então essa parte eu gostaria de um destaque muito grande, que seria rever esse período de defeso no Acre”. 

“Reduzindo o estoque, aumenta a pressão sobre o produto, aumenta o valor desse produto e a pressão em cima desse estoque”, ressalta a cientista. “Essa seca vai gerar uma reação em cadeia. O dano maior vai ser nos próximos dois anos, os dados preliminares indicam isso”, complementa Lucena. 

Para a pesquisadora, é urgente que algo efetivo seja feito para garantir não apenas a biodiversidade aquática, mas a vida das populações mais impactadas. 

“A gente precisa trabalhar mais com a realidade, menos com ilusão, usar realmente o dinheiro para efetivar as políticas públicas”, diz. É importante que essas políticas alcancem as famílias necessitadas e que a legislação de pesca seja revista, assim como a questão de conservação e preservação do ambiente. 

O Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MDR) informou à Amazônia Real que reconheceu os decretos de situação de emergência dos municípios do Acre por seca e que a situação dos rios e as condições meteorológicas são observadas junto às agências federais de monitoramento.

A respeito da previsão da ajuda humanitária, o  ministério disse que “cabe aos municípios reconhecidos fazerem a solicitação da demanda de assistência humanitária”. Após análise, se aprovado, o município recebe recursos financeiros para aquisição dos materiais e serviços. 

Segundo Pedro Noronha, da Defesa Civil do Acre, a situação nos rios é bastante crítica, com um cenário de seca e com séries mínimas históricas sendo batidas. Isso afeta não só o abastecimento, como também a navegabilidade para os municípios de difícil acesso. 

O plano de trabalho do governo estadual consiste em levar cestas básicas, contratar carro pipa e apoio logístico aos municípios isolados. “O plano de trabalho deve ser aprovado até semana que vem, que é de fato quando iniciam os trabalhos junto com Brasília”, diz Noronha. 

À Amazônia Real, o secretário da Agricultura, Pesca e Abastecimento de Cruzeiro do Sul,  Eutimar Sombra, disse que a situação está sendo apurada e já há muitos relatos de perda de roça e de tráfego inviável nos igarapés. 

“Estamos fazendo um levantamento, estão chegando as demandas, as reivindicações dos ribeirinhos, das pessoas que moram no ramal. A gente fez uma reunião para chamar os parceiros, que são Exército, bombeiros, Polícia Militar, todos os órgãos que fazem parte e podem contribuir com essa ação a favor do nosso produtor e ribeirinho”, informou o secretário.

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