A violência armada contribui para a manutenção da desigualdade racial no país
Por Carolina Ricardo e Cristina Neme*
Todo mundo deveria assistir ao documentário Racionais: Das Ruas de São Paulo Pro Mundo. Ao resgatar a formação do grupo musical, o filme traça um panorama das condições de vida na periferia de São Paulo desde os anos 1970.
Graças ao testemunho dos músicos, resgata a falta de perspectivas das crianças que cresceram e viveram sua juventude em meio às condições difíceis dos seus bairros nas zonas sul e norte da capital paulista. A conversa dos amigos em volta de um mapa da capital é pedagógica: Mano Brown faz questão de traçar no mapa os caminhos que tantas vezes percorreram da periferia ao centro da cidade, muitas a pé, denunciando a distância física e a desigualdade social que marcam a vida da juventude negra que eles representam.
Eles que, como diz Ice Blue com surpresa, se encontram vivos, aos 50 anos, todos, juntos, amigos. O testemunho de agressões sofridas desde cedo e ao longo da carreira, já músicos, alerta para a manifestação mais extrema do racismo estrutural que caracteriza a sociedade brasileira: a população negra, especialmente os jovens negros, são sistematicamente alvejados pela violência, institucional ou comunitária, que se constitui em mais um empecilho ao seu desenvolvimento e pode ceifar suas vidas precocemente.
Ao mesmo tempo, o filme mostra o poder da cultura, do conhecimento e da solidariedade presentes nas comunidades dos bairros periféricos, assim como a presença forte das mães desses jovens ao longo da história da banda. E nos sinaliza como, em um contexto de desigualdade social e onipresença da violência, um combinado de fatores, incluindo o sentimento de revolta, os impulsionou a ganhar o mundo sem perder o vínculo com o lugar que constituiu a sua identidade.
Mas os Racionais são exceção. O cenário da vida nas periferias da cidade mudou ao longo dos anos 80, 90 e 2000, com redução importante das mortes violentas ocorridas no estado de São Paulo, mas não mudou o padrão de desigualdade racial que sustenta as altas taxas de homicídios, desigualmente concentradas nas regiões periféricas da cidade.
A análise Violência Armada e Racismo, elaborada pelo Instituto Sou da Paz com base nas informações do Ministério da Saúde sobre mortalidade, indica que na região metropolitana de São Paulo a taxa de homicídios por arma de fogo de homens negros é 2,1 vezes maior do que de homens não negros. Quando olhamos para o conjunto das regiões metropolitanas brasileiras, essa diferença é de 3,5 vezes.
A arma de fogo, tão presente na memória dos músicos, segue como principal instrumento empregado nos milhares de homicídios registrados a cada ano no país, tendo respondido por 75% dos casos ocorridos nas regiões metropolitanas em 2020 e, entre as vítimas jovens (15 a 29 anos), essa proporção chegou a 85%.
Esses homicídios ocorrem majoritariamente fora de casa, nas ruas, onde o risco de morte é ainda maior para os homens negros. É nas ruas que os jovens estão mais vulneráveis à violência policial e criminal.
A disparidade racial observada na vitimização por arma de fogo se insere em um contexto de desigualdades sociais já atestadas quando da análise dos indicadores de renda, moradia, educação, saúde, entre outros.
A população negra conta com os níveis mais baixos de acesso a esses direitos e a desigualdade é reproduzida em camadas, como barreiras ao seu desenvolvimento. Nesse cenário, a mortalidade violenta desponta como resultado extremo do racismo estrutural que caracteriza a sociedade brasileira, sendo a arma de fogo um elemento que contribui para a perpetuação desse quadro. Em 2020, o aumento da taxa de homicídios no país decorreu apenas da vitimização de pessoas negras, enquanto entre as não negras, houve redução.
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A flexibilização da política de controle de armas promovida pelo governo federal nos últimos quatro anos resultou no aumento significativo de armas em circulação no país, armas pesadas inclusive, e no enfraquecimento da fiscalização sobre esse arsenal.
Retomar uma política responsável de controle de armas é medida essencial não só no âmbito da política nacional de segurança pública, mas também no âmbito das políticas de promoção da igualdade racial, visto que a violência armada é um dos mecanismos que contribuem para a manutenção do racismo na sociedade brasileira.
Por outro lado, ao influenciar gerações de jovens ao longo de três décadas, os Racionais evidenciam o poder da cultura na periferia e a necessidade de efetivar políticas públicas nos territórios que promovam amplo acesso à cidadania, frente essencial para quebrar o ciclo de vulnerabilidades que sujeita seus moradores à violência armada.
*Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz e Cristina Neme, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz.
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