Por Júlia Oliveira Rodrigues e Francileide Araújo
A história de amor de Nicinha e Jurema, um casal de mulheres negras, lésbicas e casadas há 40 anos, foi escolhida para representar o Brasil na série documental da Netflix. “Meu Amor – Seis Histórias de Amor Verdadeiro”, lançada neste mês, que conta com 6 episódios acompanhando casais no Brasil, Coreia, Espanha, Estados Unidos, Índia e Japão.
O episódio dirigido por Carolina Sá, traz o cotidiano das moradoras da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Ressaltando não só a afetividade do casal, como também questões como religiosidade, as relações de cuidado, na qual elas enquanto mulheres negras formam uma rede de apoio entre si. Além dos problemas sociais, como a questão da falta d’água, o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), presentes no ambiente em que vivem Nicinha e Jurema.
“Foi uma adrenalina gostosa. Nós dormíamos e acordávamos com eles já aqui, era como uma invasão boa”, conta Nicinha, a respeito das gravações do episódio que foram realizadas entre os anos de 2018 e 2019.
As duas se conheceram em uma roda de samba, quando Jurema tinha 20 anos e Nicinha 14. “Teve uma briga dela no samba e eu achei interessante: como uma menina, tão novinha, poderia levar tanta gente no peito”, conta Jurema em cena da série no streaming. Nascidas e criadas na Rocinha, trabalhadoras domésticas e hoje aposentadas, vivem em uma casa no interior do Rio de Janeiro.
“Esse amor é o que nos resume e o que nos constitui enquanto indivíduo. É ancestralidade, é carinho, é cuidado, são as flores que nascem nas flechas. Somos a rosa da resistência como bem disse Marielle Franco. E eu enxergo isso como a força que me faz caminhar, que me faz ser a mulher e mãe que eu sou, ser o indivíduo que está na favela lutando. Tudo isto vem dessa rede de mulheres pretas que me fortalecem e que me fazem me sentir rainha por ser negra, por ter essa luta e por ter essa militância”, diz Michele Lacerda filha do casal sobre viver na rede de afeto que é sua família.
Nicinha e Jurema se casaram em uma noite de São João, pulando fogueira: “Não casamos na igreja, casamos no espiritismo”, disse Nicinha. De acordo com o casal, poucas pessoas sabiam do relacionamento das duas, o que dificultou a resposta para a produção do documentário, “eu fiquei com vergonha de falar, de mostrar o que estava guardado a muito tempo, só nós e as crianças sabiam”, disse Jurema. Sobre a repercussão dentro da família, Nicinha conta como foi para mãe e a avó: “Olha minha mãe percebeu mas não falou nada, ficou na dela esperando a gente falar, a gente não falou mas ela não era boba. A minha avó também e foi tudo de bom, os irmãos também apoiaram”.
“A gente não dava motivos para a desconfiança de ninguém, mas algumas pessoas sabiam ou desconfiavam e não tinham certeza, agora eles têm. E nos sentimos super bem, não temos o que esconder, não estamos matando, não estamos roubando”, conta Nicinha sobre a repercussão do documentário e como foi ao ver sua história sendo contada. Jurema complementa falando sobre o impacto da participação delas na vizinhança: “Quando eles olham pra mim, eu não abaixo a cabeça não, na minha cabeça não está acontecendo nada”, ela conta que a vizinhança se referem a ela como: “aquela moça lá da netflix”.
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Nicinha e Jurema são umbandistas e suas religiosidades também são tratadas no no episódio, de acordo com Michele uma das peculiaridades da religião de matriz africana é que ela não se envolve com a sexualidade: “dentro da casa de umbanda é Mãe Nicinha, Mãe Jurema e Mãe Michele, fora da casa de umbanda elas tem a relação delas. Tem os respeitos, têm os preceitos, mas a vida delas e o relacionamento delas, não interfere no fato de elas serem Mães de Santo e de estarem dentro do terreiro, dentro de um axé”.
O episódio também apresenta a construção da casa de Jurema e Nicinha, casa que as duas envelheceriam juntas, que estava sendo construída no interior do Rio de Janeiro: “Está inacabada, a casa está pronta, está com janela, porta, tijolos, mas estamos fazendo devagarzinho”.