Vestir branco, comer lentinha, comer uva debaixo da mesa, pular ondas são alguns dos rituais que milhares de brasileiros fazem na virada de ano
À meia-noite do dia 31 de dezembro, milhões de brasileiros repetem gestos que atravessam séculos: pulam ondas, vestem branco, comem lentilha, fazem pedidos silenciosos. Embora muitas vezes tratados como “superstições”, esses costumes são, na verdade, rituais de passagem, práticas simbólicas que ajudam sociedades a marcar o fim de um ciclo e a entrada em outro.
Pular ondas: herança afro-atlântica
No Brasil, pular sete ondas no Réveillon está profundamente ligado às religiões de matriz africana, especialmente ao culto a Iemanjá, orixá das águas salgadas. A prática se consolidou ao longo do século vinte, sobretudo no Rio de Janeiro, onde populações negras e periféricas mantiveram vivas tradições afro-atlânticas apesar da perseguição religiosa histórica.

Cada onda pulada representa um pedido, mas também um gesto de respeito à força do mar. Para historiadores das religiões afro-brasileiras, o ritual expressa uma cosmologia na qual o futuro não é apenas esperado, mas negociado simbolicamente com a natureza e com o sagrado.
Lentilha e ceia: comida como promessa de abundância
Já a lentilha tem origem europeia. O costume remonta à Roma Antiga, onde o grão, por seu formato semelhante a moedas, simbolizava prosperidade. Com a imigração italiana, a prática chegou ao Brasil e foi incorporada às ceias de Ano Novo, especialmente no Sudeste e no Sul.
Antropólogos da alimentação explicam que, em momentos de virada, a comida deixa de ser apenas nutrição e passa a carregar significados morais e sociais. Comer lentilha, romã ou uva não garante riqueza, mas expressa um desejo coletivo de fartura em um país marcado pela desigualdade e pela insegurança econômica.
Vestir branco: paz, proteção e ancestralidade
Embora muitas pessoas associem o branco à paz, no Brasil o uso da cor no Réveillon também tem raízes nas religiões afro-brasileiras, onde o branco simboliza proteção espiritual, limpeza e equilíbrio. A prática ganhou força nas praias e se espalhou para além dos terreiros, tornando-se um costume nacional.
Esse processo de popularização revela como elementos da cultura negra foram, ao longo do tempo, incorporados ao imaginário brasileiro, muitas vezes sem o reconhecimento de sua origem africana.
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Pesquisas em ciências sociais indicam que rituais ganham força em períodos de incerteza. Em anos marcados por crises econômicas, violência ou instabilidade política, práticas simbólicas tendem a se intensificar. Elas oferecem uma sensação de controle, pertencimento e esperança, mesmo quando o futuro é imprevisível.
Relatos em vídeos nas redes sociais também revelam rituais marcados pela tradição familiar, passado de geração a geração.
Entre ondas, pratos e cores, os rituais de Ano Novo seguem vivos porque ajudam a responder a uma pergunta antiga e universal: como atravessar o desconhecido sem perder o sentido de continuidade? No Brasil, a resposta passa pela cultura, pela ancestralidade e pela insistência em acreditar que o próximo ciclo pode e deve ser melhor.









