A França devolveu a Madagascar três crânios pertencentes ao povo Sakalava, entre eles o que se acredita ser de Toera, rei decapitado por tropas coloniais em 1897. Os outros dois crânios pertenciam a generais que lutaram ao lado do monarca contra a ocupação francesa. A cerimônia de restituição ocorreu em Paris, no Ministério da Cultura, e marcou a primeira aplicação de uma lei francesa aprovada em 2023 que autoriza o retorno de restos mortais aos seus países de origem.
Após 128 anos, os restos mortais de líderes malgaxes deixam de ser tratados como peças de museu e retornam ao seu território de origem. Para a comunidade Sakalava, que ocupa grande parte da faixa costeira ocidental da ilha, a ausência representava uma ferida histórica. Os crânios serão reintegrados em rituais tradicionais na região de Menabe, no oeste de Madagascar, resgatando a dignidade e a memória de seus ancestrais.

A ministra da Cultura da França, Rachida Dati, destacou que os restos humanos entraram nas coleções nacionais “em condições que violaram a dignidade humana, dentro de um contexto de violência colonial”. Para a ministra da Cultura de Madagascar, Volamiranty Donna Mara, a devolução é um “gesto de imenso significado” que inaugura uma nova fase de cooperação entre os dois países. “Sua ausência foi, por mais de um século, uma ferida aberta no coração de nossa ilha”, declarou.
O presidente Emmanuel Macron já havia anunciado, em 2017, a intenção de avançar com políticas de restituição de patrimônios retirados durante a colonização. Um relatório de 2018 recomendou a devolução de milhares de artefatos africanos, e desde então iniciativas semelhantes foram realizadas, como o retorno de obras de arte ao Benim e ao Senegal, e de crânios de combatentes à Argélia em 2020. No entanto, esta é a primeira vez que a nova legislação é aplicada a restos mortais de líderes de Madagascar.
A devolução encerra décadas de reivindicações. O pedido formal de repatriar o crânio do rei Toera foi feito pela primeira vez em 2003 por seus descendentes. Durante anos, a demanda permaneceu sem resposta, alimentando sentimento de desprezo na comunidade Sakalava. Em 2019, o presidente de Madagascar, Andry Rajoelina, transformou a questão em promessa de campanha, reforçando o valor da memória para a identidade nacional.
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Para a população local, o retorno vai além do simbolismo político. Segundo Fetra Rakotondrasoava, secretário-geral do Ministério da Cultura malgaxe, a cerimônia de restituição permitirá que tradições como a fitampoha, ritual de encontro com os ancestrais, sejam realizadas de forma completa. “Isso vai além de uma simples restituição, pois os ancestrais ocupam um lugar muito importante na cultura malgaxe”, afirmou.
A repatriação também abre precedente para outros pedidos. Países como Austrália e Argentina já solicitaram oficialmente a devolução de restos mortais mantidos em museus franceses. Na Austrália, 55 restos de aborígenes foram identificados; na Argentina, há reivindicação pelo esqueleto de Liempichún Sakamata, filho de um líder indígena tehuelche levado à França no final do século XIX. A lei de 2023 prevê um procedimento específico para essas devoluções, coordenado por um comitê científico conjunto.
Em Madagascar, o suposto crânio do rei Toera será enterrado em Ambiky, local onde ocorreu o massacre de 1897, no qual centenas de malgaxes foram mortos. Antes, haverá uma homenagem de Estado em Antananarivo e rituais em Belo-sur-Tsiribihina. Para o governo malgaxe, o retorno simboliza a cura de uma ferida colonial e o fortalecimento da memória coletiva.
O episódio representa não apenas a restituição de restos mortais, mas um reconhecimento da necessidade de rever o legado do colonialismo e devolver dignidade a povos que tiveram suas histórias violentamente interrompidas.