*Reportagem publicada pelo Coletivo Entre Becos, de Salvador, e replicado na íntegra pelo Notícia Preta
“Do jeitinho que o Caps gosta” ou “O paciente mais fraco do Caps”. Tais expressões têm se popularizado, ultimamente, nas redes sociais, em tom de humor. Entretanto, são mal-entendidos que desinformam e afastam as pessoas que mais precisam dos serviços, reforçando estigmas e preconceitos envolvendo saúde mental.
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e oferecem acolhimento diário e atendimento multiprofissional, voltado para pessoas com transtornos mentais graves. São também portas de entrada para o tratamento humanizado, oferecendo acompanhamento médico, psicológico e social, além de atividades em grupo que estimulam a reinserção comunitária. Nas periferias, onde a vulnerabilidade social se soma à falta de acesso a serviços de saúde, estes espaços se tornam fundamentais.

Luta antimanicomial
A psicóloga clínica e terapeuta cognitiva comportamental, Cristiane Simões, atuou por anos na região de Cajazeiras. Segundo ela, o Caps possui portas abertas para quem deseja buscar acolhimento e atendimento em saúde mental, sobretudo nas áreas mais afastadas da cidade.
“Nas periferias, esses centros têm um peso enorme, porque muitas vezes são os únicos serviços de saúde mental acessível para a comunidade, aproximando o atendimento psiquiátrico e psicológico, ajudando a quebrar preconceitos e estigmas e fazendo valer a pena as políticas públicas do país”, destaca.
“É importante lembrar que trata-se de uma conquista histórica da luta antimanicomial no Brasil, representando a aposta em uma saúde mental mais humana, que respeita direitos e valoriza a vida em comunidade. Proteger e fortalecer esses serviços é garantir acesso à saúde mental de qualidade, principalmente para quem mais precisa”, continuou. Ela explica que os serviços também são oferecidos por meio de oficinas, atividades culturais, inserção no trabalho e apoio às famílias, promovendo autonomia e pertencimento.

Caps na Periferia
A rede municipal de Salvador conta com 20 Caps e três Centros de Saúde Mental, que funcionam como ambulatórios especializados. Nos casos de urgência psiquiátrica, o atendimento 24 horas é oferecido no 5º Centro de Saúde Clementino Fraga, no Vale dos Barris, além das UPAs de Santo Antônio/Cidade Baixa e de Valéria, que também contam com suporte contínuo. Quando há necessidade de acompanhamento prolongado, o paciente é direcionado ao Caps mais próximo de sua residência para dar continuidade ao cuidado.
Entre as unidades presentes nas regiões periféricas, que garantem a cobertura a diferentes territórios da capital, estão: o Caps II Águas Claras, em Cajazeiras II, que atende bairros como Boca da Mata, Fazenda Grande e Palestina; o Caps III Alto de Coutos, no Subúrbio Ferroviário; além de unidades em Pernambués, Itapuã e Engenho Velho de Brotas.
O Caps de Cajazeiras II foi inaugurado em 2004. Neste mesmo ano, a paciente Elza Pereira, 67, dona de casa, fez a inscrição para receber o atendimento especializado. Ela faz uso contínuo de medicamentos para tratar a depressão após o parto do filho caçula, que tem, hoje, 36 anos. Ainda, busca conter a ansiedade e toma, ao todo, cinco comprimidos por dia.
No geral, já são 21 anos sendo acompanhada pela mesma médica, a psiquiatra doutora Manuela, que acompanha seu tratamento ao longo de todo esse período. Nos dias de consulta, vai só – o acompanhamento da filha acontece quando necessário.
“Lá é muito bom. Todo mundo é tratado muito bem e com muita paciência. Lá eu faço consultas para cuidar da mente e do quadro de depressão”, explicou Elza.
O CAPS possui um trabalho multiprofissional, com psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e enfermeiros, atuando de forma integrada. Elza ressalta, no entanto, que o centro vai além das atividades clínicas, oferecendo também serviços de integração social. “Eu mesma participei das oficinas de yoga que tinham lá. Mesmo eu não aguentando muito, eles incentivavam”, apontou.
Serviço essencial
Outra paciente do Caps Cajazeiras II é Angélica de Jesus – ou Ângela, como gosta de ser chamada –, de 49 anos, moradora de Águas Claras e diagnosticada com esquizofrenia e bipolaridade. Ela sai sozinha de casa a cada quinze dias, por volta das 13h30. Faz um deslocamento de ônibus, de forma gratuita, o que garante sua presença constante no serviço.
“Quando chego lá, encontro os pacientes e as médicas. Aí vou tomar injeção e os medicamentos”, descreve Ângela. Ela recebe, também, um benefício social há quase dez anos devido ao seu transtorno mental, no valor de um salário mínimo.
Ângela comenta que seus momentos preferidos no Caps são quando há confraternização e socialização.
“Gosto muito quando é período de festa, como Natal e São João, em que está todo mundo junto e das aulas de pintura e de crochê, que são ótimas para o tratamento”.
A irmã de Ângela, que preferiu não se identificar, reforça a importância deste apoio e acompanhamento. “Antes, ela (Ângela) vivia sem tratamento. Depois do Caps, passou a tomar os medicamentos e a ter toda assistência, com apoio psiquiátrico, terapia ocupacional e oficinas. Todo o medicamento dela, inclusive, é de lá”, disse, ressaltando que os profissionais vão, até mesmo nas residências, quando necessitam de suportes.
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Sobre as atividades oferecidas nos centros de atendimento, a irmã de Ângela acrescenta: “Tem uma série de atividades que ela não está fazendo mais porque não acha mais incentivo. Mas eu sempre digo a ela: ‘Ângela, você tem que ir porque você precisa ocupar a mente. Lá tem tudo o que você precisa, então tem que usar, porque é muito bom’”, contou a irmã.
O perfil de Ângela – e também o de Elza –, confirma o resultado de uma pesquisa realizada entre 2022 e 2023, no Centro de Atenção Psicossocial II, que revelou que a maioria dos usuários atendidos pelo Caps são mulheres (54,9%), na faixa etária de 41 a 60 anos (56,1%) e com baixa escolaridade — com 32,9% apresentando ensino fundamental incompleto.

Nem tudo são flores…
Entretanto, como diz o ditado, ‘nem tudo são flores’. Segundo a psicóloga, os desafios que cercam o funcionamento dos centros são inúmeros, como: obstáculos enfrentados por pacientes com dificuldade em conseguir agendamentos; falta de medicamentos; carência de profissionais qualificados; problemas de infraestrutura; e sobrecarga das equipes de saúde.
“Quando falamos de bairros periféricos, o peso ainda é maior. O transporte é difícil, os recursos são mais escassos, as pessoas chegam com muitas marcas da desigualdade social, e a violência inserida no bairro, são fatores que torna o dia a dia do centro muito desafiante”, relata Cristiane. “O Caps se torna uma espécie de ilha de cuidado no meio de tantas dificuldades. Só que essa ilha precisa de apoio e de uma atenção pública mais acentuada e firme diante das dificuldades que cada bairro enfrenta”, continuou.
A profissional ressalta, no entanto, que apesar das limitações, esse modelo amplia as possibilidades de cuidado aos pacientes com grupos terapêuticos, oficinas, acompanhamento medicamentoso, visitas domiciliares e acolhimento às famílias. “Mesmo que estejam longe de conseguir suprir toda a demanda, eles buscam garantir um cuidado mais próximo e humanizado, aumentando a adesão ao tratamento”, descreveu.
“Eu não posso viver sem ir lá. Tenho que pegar meus remédios certinhos, pois não consigo ficar sem. Pego a medicação para dois meses e depois retorno à médica. Se não tivesse essa melhoria, eu já teria saído doida por aí”, reafirma Elza.
A irmã de Ângela, por sua vez, recomenda: “Toda família que tiver alguém nessa situação, que precise de psicóloga ou de psiquiatra, deve levar ao Caps, porque lá tem, realmente, todo o apoio que a pessoa precisa”.
Reportagem de Vagner Ferreira, Edição de Cleber Arruda e Rosana Silva, Fotografia de Vagner Ferreira