A obra revela trajetória singular silenciada pelo racismo
No próximo dia 10 de julho, a 9ª Edição do Festival Ecrã abre sua programação com uma sessão histórica: a apresentação do documentário “Dois Nilos”, curta que resgata a vida e a obra de Afranio Vital, figura fundamental e esquecida do cinema brasileiro. A exibição será acompanhada da reapresentação de “Ataulfo Alves”, curta raríssimo dirigido pelo cineasta há 50 anos e fora de circulação desde então. A sessão acontecerá no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, às 19h. As equipes dos dois curtas participarão da abertura do Festival.
“Dois Nilos” parte da amizade entre Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro, diretores do documentário, com Afranio Vital para construir um retrato íntimo, político e poético do artista que, apesar da relevância para o cinema brasileiro, teve sua trajetória interrompida e apagada por anos pelo racismo estrutural. No filme, que tem participação do ator Wilson Rabelo (Pablo & Luisão e Bacurau), o espectador é apresentado à história e à estética particular do cineasta que, segundo o próprio, “estava à margem do cinema marginal” – feito que, no Brasil, só seria possível por meio das lentes de uma pessoa negra.

Para os diretores Samuel e Rodrigo, que realizaram o filme sem nenhum apoio financeiro, “Dois Nilos” é, além de um gesto de respeito com a história do Afranio, um movimento pela memória do cinema brasileiro. “É muito bacana ver como o público abraçou o filme, que extrapolou as telas ao mobilizar festivais, acervos, pesquisadores e plateias em torno da trajetória dele. O que começou como uma conversa na praça virou a reentrada de um cineasta importante na história do cinema brasileiro”, explicam.
Foi nesse contexto que o raro curta “Ataulfo Alves”, dirigido por Afranio em 1973 e exibido no Festival de Belém no ano seguinte, foi localizado pela pesquisadora Lorenna Rocha. Fotografado pelo também cineasta Murilo Salles, a obra, que estava no acervo do Centro Técnico Audiovisual (CTAv), do Governo Federal, também será apresentada durante o Festival Ecrã. Além disso, o momento também marca o início de um processo de restauração de obras de Afranio, a serem concluídas ainda em 2025, após décadas de dispersão de seu acervo.
Para o cineasta homenageado, “Dois Nilos” é um divisor de águas. “Sinceramente, aos 76 anos, me sentia pronto para o fim quando apareceu a ideia do filme. Me senti à vontade para compartilhar minha vida com a equipe e o processo todo foi muito especial. “Dois Nilos” me deu a oportunidade de refletir sobre o cinema, sobre o que eu fiz, sobre o desaparecimento dos cinemas enquanto salas e também sobre o futuro”, diz Vital.
Obra reconhecida nacional e internacionalmente
Desde 2024, quando estreou na competição do 57° Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o curta foi reconhecido em importantes premiações de cinema do país, tendo recebido Menção Honrosa pelo júri oficial, e Prêmio Especial Zózimo Bulbul no mais antigo festival de cinema do país. “Dois Nilos” também recebeu os prêmios de melhor curta pelo júri popular da Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2025, e de Aquisição Canal Brasil no tradicional É Tudo Verdade, em abril.
Além do reconhecimento nacional, em julho deste ano, a obra terá sua estreia internacional no BlackStar Film Festival, na Filadélfia (EUA), um dos principais festivais do mundo dedicados ao cinema negro e indígena, e terá exibição comercial em sessões diárias no Cine Brasília, na capital federal.
Saiba mais sobre a trajetória de Afranio Vital
O cineasta carioca de 76 anos tem uma contribuição valiosa para a cultura brasileira, apesar de viver no ostracismo. Nascido numa família de sete irmãos, começou a se interessar por cinema ainda muito jovem. Vivia entre as antigas salas de rua do Cine Pathé, na Cinelândia, e do cinema Beija-Flor, em Madureira, ambas no Rio.
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A partir daí, Afranio mergulhou na sétima arte e começou a produzir seus próprios filmes. Erudito e popular, dirigiu curtas sobre o poeta Augusto dos Anjos, o compositor pernambucano Antonio Maria e o sambista mineiro Ataulfo Alves, abrindo espaço para realizar seus primeiros longas, histórias urbanas envolvendo existencialismo erótico ao som de jazz.
Em 1984, depois de uma tentativa frustrada de transformar em filme a primeira peça de Nelson Rodrigues, “A Mulher Sem Pecado”, Afranio desistiu de vez de fazer cinema. O projeto foi aprovado pelo próprio Nelson, mas quando tentaram substituir Afranio por um diretor branco o filme não foi pra frente. “Dois Nilos” reapresenta esse importante personagem ao público brasileiro, mostrando que uma vida de cinema não acaba assim.
SERVIÇO
Exibição do curta documentário Dois Nilos na abertura do 9º Festival Ecrã
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (R. Primeiro de Março, 66 – Centro, Rio de Janeiro)
Data: 10 de julho, às 19h