Por Luiza Mandela*
No dia 9 de janeiro de 2025, a Lei 10.639/03 completa 22 anos. A norma, que obriga escolas públicas e particulares a inserir em seus currículos a história e cultura afro-brasileira e africana, ainda encontra muitas barreiras para sua aplicabilidade plena. Infelizmente sabemos que muitas barreiras para sua aplicação vêm do racismo, da resistência de muitos gestores e educadores em de fato fazer a inserção da cultura afro-brasileira e africana nos currículos escolares de forma permanente, superando datas pontuais.
O Instituto Alana (2023) realizou uma pesquisa para investigar a atuação das secretarias municipais de educação na correta aplicação da lei. Entretanto, obteve resposta de apenas 1.187 secretarias, o que equivale a 21% dos municípios. A pesquisa constatou que apenas 8% das prefeituras têm orçamento para a temática, e 26% têm uma área, equipe ou profissionais específicos pelo ensino de história e cultura afro-brasileira dentro das secretarias municipais de educação. O mais alarmante dessa pesquisa é que bem menos que a metade dos municípios brasileiros respondeu à pesquisa, o que mostra o quão desafiador é ainda nesse país, o último a abolir a escravidão, romper com o eurocentrismo imposto nos currículos escolares.
Como uma criança negra da década de 90 aprendi que os grandes inventores, navegadores e intelectuais foram os homens brancos, europeus, o que ajudou a construir a minha identidade e subjetividade enquanto pessoa negra. A história negra contada nas escolas era somente a da escravidão, com isso nos foi negado, de forma intencional, o acesso a nossa verdadeira história.
Não somos descendentes de escravos, e sim de reis, rainhas, arquitetos, inventores, escritores que foram sequestrados e escravizados. Porém essa história sob a ótica negra ainda é negada por muitas instituições, o que torna a aplicabilidade da Lei 10.639/03 um desafio constante. Ser antirracista é, antes de tudo, reconhecer que o nosso país é racista e alija pessoas negras de direitos, e se faz necessário, além de reconhecer, agir para combater o racismo presente em nossa sociedade.
Apesar de muitos desafios para que o ensino da nossa verdadeira história seja de fato uma realidade em todas as escolas, públicas e privadas como preconiza a lei, é possível reconhecer os avanços. Municípios como o de Macaé, no estado do Rio de Janeiro, que possui uma Coordenadoria de Igualdade Racial e promove formações continuadas durante o ano todo sobre letramento racial para os servidores do município, além da implementação do Disque Racismo, para receber denúncias de racismo e encaminhar para os órgãos cabíveis, além de possuir verba específica para a temática, o que faz com que as ações se tornem efetivas. Reconhecer os avanços para a promoção da Justiça Curricular, como nos ensina Nilma Gomes, é fundamental para que possamos seguir acreditando que a luta dos que nos antecederam para que essa lei fosse sancionada não foi em vão.
Muitas formações sobre educação para as relações étnico-raciais também foram criadas e se colocaram como possibilidade de construir um currículo antirracista durante o ano todo, preenchendo as lacunas deixadas pela formação docente, que sabemos que não oferta de forma obrigatória em seus cursos disciplinas sobre as relações étnico-raciais. Movimentos importantes surgiram como alternativas para o cumprimento da lei e hoje não podemos dizer que não existem materiais de qualidade, como histórias afro referenciadas, materiais pedagógicos, como o giz de cera tons de pele variados, e outros materiais que ajudam a construir uma educação que rompa com o epistemicídio, como nos alerta Sueli Carneiro.
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Sigo na esperança de que a educação para as relações étnico-raciais não seja mais vista como algo “a mais” ou “à parte” da educação, e sim como a educação. A intelectual Bárbara Carine nos diz que “ou a educação é antirracista, ou não é educação”. Então, sigamos trabalhando e acreditando na transformação que o nosso trabalho proporciona e impactará as próximas gerações.
Inclusive já vejo na infância de hoje, através da minha filha Alice Mahin, uma consciência racial e uma autoestima muito melhor do que minha na mesma idade que a dela – 6 anos. Então sim, a base está vindo forte e precisamos seguir, pois apesar dos avanços, ainda temos muito a fazer para que de fato a nossa sociedade seja mais justa, equânime e respeitosa.
*Luiza Mandela é pedagoga, mestre em Relações Étnico-Raciais e doutoranda em Educação. Atuou como professora de Educação Infantil por mais de 11 anos e já chefiou a Gerência de Relações Étnico-raciais, na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Escritora com seis livros publicados como co-autora, atualmente, está no ar em todas as plataformas de áudio e vídeo com o Mandela Pod, em que discute as relações étnico-raciais e sua importância para a sociedade brasileira.