Um jovem negro incomoda muita gente

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Por: Jéssica Silva de Oliveira
Advogada Civilista

Traçando um paralelo com o Direito das Sucessões, onde vigora o princípio de não existir herança negativa (art. 1.792 do Código Civil), o passado escravagista do Brasil deixou como espólio uma enorme dívida para a população negra. 

A herança deixada pelo histórico escravagista do país se tornou demasiadamente onerosa à população negra, tendo estratificado as relações socioeconômicas entre pessoas brancas e não brancas, de modo que pessoas negras, incontestavelmente, habitam a base da pirâmide social. 

A mentalidade racista predominante se esforça em perpetuar uma imagem do negro eivada de estereótipos que em nada correspondem à origem dos povos escravizados, como a alegada inferioridade em relação ao branco. Contudo, todo esse esforço em macular a imagem do negro, bem como omitir quão enriquecedores e avançados eram os conhecimentos dos povos africanos (apagamento histórico-cultural), tem por escopo a manutençãodesse status quo de superioridade e dominação racial. 

Desde então, parece que a ordem normativa vigente é a do escracho indiscriminado da população negra, como forma de lembrar qual é o seu “devido lugar” na sociedade. E, assim, o que não falta é branco reivindicando o status de superioridade de sua raça (porque branco também é raça, embora eles não se racializem no contexto de opressões no qual foram forjados), através de ataques gratuitos a pessoas negras. 

Não é à toa um morador de um condomínio de luxo, em uma demonstração inequívoca de sua convicção na superioridade da raça branca, apontar para a própria pele e afirmar que um jovem negro, a serviço de um aplicativo de refeições, tem inveja dele por ser branco e rico. Ou que um comentarista de futebol afirme que um jogador negro estaria na senzala, fazendo chacota de um profissional que, mesmo com mais 10 anos de atuação no esporte, a mídia racista insiste em rotular como uma “fábrica de memes”, ignorando sua atuação profissional. 

Estarmos sob o comando de um governo reacionário só potencializa a intensidade desses ataques, uma vez que a certeza da impunidade é a dose de coragem que faltava a essas pessoas. Chegamos a um ponto que um jovem negro não pode sequer postar fotos nas redes sociais, enaltecendo o crescimento do seu black power, inspirado no meme “o início do sonho/deu tudo certo”, sem sofrer centenas de ataques racistas. 

Analisando esses casos, todos noticiados só na última semana, a conclusão é que, se o negro a serviço do branco incomoda, o negro se destacando profissionalmente incomoda e o negro se amando nas redes sociais incomoda, o que está faltando para que entendam, de uma vez por todas, que, como bem afirmou Grada Kilomba: “o racismo é uma problemática branca”? Em outras palavras, o racismo é coisa de branco (alô, William Waack!). 

Se um jovem negro incomoda muita gente, da nossa parte, a única certeza que temos é que vamos continuar incomodando, cada vez mais, saindo das senzalas contemporâneas e nos sentando na mesma sala de jantar que vocês, colocando em xeque todo os privilégios conquistados às custas da opressão do nosso povo.

Jéssica Silva de Oliveira – Advogada
Contato: https://linktr.ee/silvadeoliveira.adv

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