Dia 28 de setembro é a data que marca a promulgação da Lei do Ventre Livre, que deveria garantir que os filhos de escravizadas seriam considerados livres a partir de 1871. Na mesma data, em 1885, foi promulgada a Lei dos Sexagenários, que dava liberdade aos escravizados que tinham mais de 60 anos. Estas leis foram implementadas em um período que é chamado pelo jornalista e cientista social, Clóvis Moura como “escravismo tardio”.
O historiador e doutorando em Serviço Social, Jones Manoel, em entrevista exclusiva ao Notícia Preta, falou sobre os aspectos desse período. Em 1850 quando se proíbe o tráfico internacional até 1888 data da abolição da escravatura, o período do escravismo tardio mesclou o atraso do modo de produção escravista com as elações capitalistas que estavam começando no Brasil, mas conservando as barragens sociais que freavam o progresso dos negros.
As leis abolicionistas
Para Jones Manoel, essas leis são parte de um conjunto de medidas legislativas que se estenderam por décadas, que parte uma perspectiva de uma resistência significativa os proprietários de pessoas escravizadas a não conceder a abolição. Isso tudo conectado com a pressão internacional da Inglaterra.
“Não porque a Inglaterra era boazinha, humanista, até porque a Inglaterra lucrou e muito com o tráfico de pessoas escravizadas, mas chegou um determinado momento no século 19, que a partir do desenvolvimento capitalista do país a manutenção da escravismo colonial no Brasil e nas Américas de maneira geral não era mais interessante para os desejos da burguesia inglesa”, explica.
Após a proibição do tráfico negreiro para o Brasil em 1850, continuou um processo de vinda de novas pessoas escravizadas para o país. O historiador lembra que Clovis Moura demonstrou que, toda a história brasileira do século 16 até o século 19 havia registro de lutas de pessoas escravizadas, quilombos, fugas, assassinatos de senhores de escravizados, suicídios, sabotagens de máquinas dos engenhos de cana de açúcar e etc.
Escravismo Pleno x Escravismo Tardio
Jones é um dos maiores estudiosos da categoria racial no Brasil e tem parte de sua interpretação intelectual centrada na figura de Clóvis Moura. Ele explica que há o período de escravismo pleno, que vai desde o início da criação do escravismo colonial no Brasil até 1850, no qual basicamente só as pessoas escravizadas lutavam contra a escravidão.
Fundamentalmente e a partir de 1850 até a abolição, Moura denominou esse período de escravismo tardio: em que setores de camadas médias urbanas, advogados, intelectuais, alguns militares, juristas, comerciantes e entre outros aderiram a demanda abolicionista, mas o professor ressalta.
“Mas reduzindo o seu potencial de radicalidade, e fundamentalmente fazendo com que o abolicionismo não signifique um questionamento sistemático da sociedade construída a partir do processo colonial escravagista. Então a lei do ventre livre se insere nesse longo estratagema para garantir uma abolição que não mexesse nos interesses fundamentais da classe dominante que ficou muito rica com séculos de escravismo”, explicou.
Quilombos em contraste com a ordem vigente
“O negativo da casa grande não era a senzala, era o quilombo”, lembrou ele. A República dos Palmares durou quase 100 anos. Segundo o historiador, foi uma negação do que era as relações sociais na sociedade colonial. O livro sociologia do negro brasileiro faz um debate mostrando como o nível de abundância material de disponibilidade de comida era muito maior em Palmares do que nos engenhos de cana de açúcar.
As necessidades da população do quilombo dos palmares não era produzir cana de açúcar para exportação, de acordo com ele nesse período o escravismo tardio trouxe correntes pequeno burguesas ou reformistas para a luta abolicionista. Se tinha a ideia de que era preciso fazer um processo abolicionista que não fosse radical e que o negro não fosse protagonista e que não tivesse como consequência uma revolução agrária, que era o ponto central.
“No Brasil, não existia sistema de saúde público, sistema de educação pública, não existia na prática, a própria noção da cidadania, considerando que, analfabetos não votavam ainda na criação da República. A grande questão era a propriedade da terra. O Brasil era majoritariamente agrário, praticamente não tinha indústria. O pouquinho que tinha era indústria leve, de tecido ou para fazer embalagem de café para exportação para a Europa. Então, o principal meio de produção era a terra”, argumentou o escritor.
Para ele, o principal elemento de conformação das desigualdades, de renda, riqueza e propriedade era a terra. A questão central com as abolições é que a população negra não teve direito à terra e não teve reforma agrária.
Ele criticou a ideia de representatividade levantada pela grandes empresas:
“Dizem que gostam de diversidade, né? E aí você pode falar em abstrato, de oportunidade, educação, mas não dá pra falar em abstrato de propriedade, não pode falar de reforma agrária, de reforma urbana”, afirma.
O intelectual afirmou que a classe dominante brasileira encaminhou uma abolição desse que não tocasse na propriedade. Como exemplo ele diz que antes ainda do processo de abolição, houve imigração em massa de força de trabalho europeia branca para o Brasil e vários imigrantes europeus tiveram acesso facilitado à terra e conseguiram prosperar, pois tiveram acesso ao principal meio de produção da época segundo ele, a terra.
O negro como inimigo interno
“O Brasil a busca por um inimigo interno, do ponto de vista da classe dominante brasileira e do aparelho do Estado. Porém, esse inimigo interno, na década de 20, se transforma no comunista. Então o comunista, o sindicalista vira o inimigo interno. Mas isso é só na década de 20 do século 20. Durante todo o século 19, o inimigo interno era o fantasma da revolução haitiana no Brasil, ou como se falava na época, a haitianização do Brasil”, disse Jones.
Para o professor durante mais de 100 anos, o grande inimigo interno a ser combatido era o medo da haitianização no Brasil. Nesse sentido, todo o aparelho do Estado durante o Brasil Império e durante a República foi montado tendo como elemento implícito ou explícito combater esse perigo da revolução negra, da rebelião negra debaixo. E assim ele cita leis que serviram como barreiras sociais ao negro.
“A Lei da vadiagem, se insere nisso, a proibição da capoeira, a proibição das religiões de matriz africana, a proibição do voto, a ideologia do branqueamento, do racismo cientifico, de dizer que o Brasil não se desenvolvia porque tinha muito sangue negro e indígena, então foi montado um aparelho regime jurídico politico anti-negro”, afirma.
Barreira social nos dias atuais
“O elemento fundamental que impede o acesso da população negra aos direitos básicos e fundamentais é o poder da classe dominante. Essa classe dominante é branca, mas o problema central não é ela ser branca, o problema central é existir uma classe dominante, existe uma parcela da sociedade que controla a riqueza e o poder político, e que portanto mantém uma dinâmica de produção que garante os privilégios. A gente só vai conseguir enfrentar o racismo quando conectar uma proposta política antirracista que vai na dimensão da crítica da economia política. Nada é mais antirracista no país do que uma reforma agrária ou reforma urbana“.
Para ele a pauta número um do movimento negro no Brasil, deveria ser democratizar a propriedade da terra, a segunda seria se apropriar do orçamento público e o rentismo, que segundo ele faz com que por ano R$600 bilhões sejam pagos para detentores de títulos da dívida pública, em contra partida o investimento público para saúde, educação, cultura, lazer, meio ambiente, ciência e tecnologia é constrangido por um novo teto gastos.
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“A dominação do Brasil é racial classista, porque a nossa população negra é fundamentalmente uma população trabalhadora. Eu sei que muita gente no movimento negro tem um sonho de criar uma burguesia negra no Brasil mas vai rolar não. E se rolar não muda nada. ‘Ah não mas agora tem negro bilionário’. Isso não muda nada da vida da população negra e nem da maioria desse país”, concluiu.
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