Por Marco Rocha*
Vivemos numa sociedade onde temos uma opinião formada sobre tudo e todos estão prontos para negar qualquer opinião em contrário. Vivemos numa sociedade onde “gênios” são fabricados numa velocidade fantástica. Vivemos numa sociedade em que aqueles que detêm notório saber, seja acadêmico ou empírico, são postos em dúvida por qualquer “tia do zap”. Vivemos em tempos em que o conhecimento construído, testado, analisado, revisado e comprovado está com os dias contados. E isso, definitivamente, não é por acaso.
Muitos estudiosos de diferentes áreas, desde a filosofia até a neurociência, entendem que estamos passando pela “era da idiotização”, que vem se desenvolvendo há décadas, mas que, com o advento da internet e suas redes sociais, ganhou corpo, olhos e uma voz cada vez mais alta, capaz de persuadir até o mais desconfiado dos mortais. E tudo isso sem, aparentemente, estratégias bem elaboradas. Não é preciso muito para convencer alguém, usando uma linguagem muito simples e direta, de que tudo o que se diz é a mais pura verdade uma vez que foi dito por alguém com uma suposta autoridade, como um “especialista”, universidade estrangeira ou a uma liderança política, religiosa ou econômica.
Mas, vamos com calma, porque isso não foi criado do dia para a noite. Viver no Brasil é ter a certeza de que vai, em algum momento da sua vida, ouvir algo negativo sobre a Educação nesse país. No “Brasil, a educação não vai pra gente!”, mas, por que, não? Já se fizeram essa pergunta? A resposta é relativamente simples: Manter a população refém de um sistema educacional cheio de falhas, ausências e péssima estrutura pode ser muito vantajoso. De quem eu estou falando? Das diferentes instâncias de poder que dominam esse país: Governos, mídia e igreja, por exemplo. Os formadores do pensar social que impõem um ponto de vista para o seu público e sabem que, quanto menor for a capacidade cognitiva dessa população, menores serão as chances de compreensão a cerca de sua própria realidade e da dominação que sofrem. A deterioração da Educação tem estruturas profundas, o que abre caminhos para um processo de idiotização de uma enorme parcela da população.
Mas, o que de fato isso significa? Se uma sociedade tem a sua população, sobretudo aqueles com maior vulnerabilidade social, submetida a um processo de formação educacional cheio de lacunas, que a impede de compreender conceitos básicos que auxiliam na sua sobrevivência, é claro que isso vai impactar na leitura que essas pessoas fazem da sua realidade. A simplificação da nossa visão que sobre o mundo é algo muito perigoso, uma vez que é feita de forma pensada a excluir uma parcela enorme da população de um debate mais profundo sobre a própria sociedade em que vive. Impondo uma exclusão intelectual direcionada a maiorias minorizadas como pobres, negros, mulheres, lgbts e comunidades tradicionais.
Mas, essa parcela da população não é a única a ser afetada. A classe média não passa incólume. A deterioração do processo educacional não está apenas relacionada a exclusão, mas, também, a pasteurização do ensino. O que significa dizer que os conteúdos abordados ao longo da vida estudantil, privilegiam o volume de informação e não o que pensar a partir dela, suprimindo todas as possibilidades de análise crítica sobre assuntos que são determinantes para o nosso desenvolvimento como indivíduos e como sociedade. Dessa forma, mesmo com acesso a estrutura formal de ensino, uma enorme parcela da sociedade também não está apta a fazer uma leitura profunda sobre a realidade onde vive.
E onde está o perigo em tudo isso? Se a maioria esmagadora da população está a margem da construção de um pensamento crítico, do entendimento sobre as questões que impactam diretamente a sua vida e são um produto da simplificação intelectual, é claro que o alcance dessas pessoas a temas mais complexos, estará comprometido. Sendo assim, alguém, ou um grupo, decidirá o que será visto, pensado e falado por essa maioria. E não apenas o que será, mas, como será. E é nesse ponto onde há uma interseção entre quem estabelece os alcances do saber, quem veicula a informação e quem determina o que traz conforto espiritual diante de uma vida repleta de dificuldades. Esse tripé organiza e dita o tempo todo o que vamos pensar, como vamos agir e, sobretudo, até onde vai a nossa capacidade de compreensão.
Esse grupo seleto detém acesso a áreas absolutamente restritas que sequer fazem parte do imaginário popular de tão exclusivas que são, corresponde a 1% da população que detém os meios de produção, o dinheiro e o poder sobre o comportamento dos 99%. O que permite não apenas criar uma fonte inesgotável de poder financeiro e de influência, mas também, mantê-los intocáveis sob o seu comando por gerações. E isso pode ser feito de inúmeras formas, mas, sempre obedecendo a um padrão: Descredibilize a educação crítica, desmereça professores, educadores e pesquisadores, duvide da ciência e crie todo tipo de mentiras com um potencial enorme de provocar o caos e implodir qualquer possibilidade de desenvolvimento de uma sociedade mais crítica, com maior poder de decisão e com mais autonomia sobre a sua própria história.
E o que fazer para neutralizar qualquer tipo de atitude que possa ir contra esse projeto de poder que nos impede de pensar? Nivele o conteúdo daquilo que consumimos a patamares baixíssimos de qualidade, criando entretenimento vazio, estimulando o horror pela leitura e pelo conhecimento, demonizando a cultura e a ciência, uniformizando a forma de pensar de toda uma sociedade. E para que tudo isso seja colocado em prática, esse grupo de intocáveis se utiliza de soldados muito fiéis: a mídia, o fundamentalismo religioso, polarização política e as redes sociais.
Tudo isso converge para algo que precisa ser pensado em tempos crises fabricadas: a importância da responsabilidade argumentativa. Narrativas são criadas o tempo todo e por fontes cada vez menos comprometidas com a veracidade dos fatos e que nutrem um verdadeiro horror pelo conhecimento. Qual é o resultado disso? Uma avalanche descomunal de desinformação, mentiras e discursos de ódio que são propagados como rastros de pólvora através das redes sociais, alcançando um número impressionante de pessoas em poucos segundos. Mensagens escritas, de forma muito bem pensada, com a simplicidade necessária para alcançar massas iletradas e com baixa capacidade de entendimento, repletas de frases alarmistas que despertam euforia, medo e ódio em quem não é capaz de decodificá-las.
E esse arsenal de fake news não se espalha por si só, sendo necessário encontrar quem amplifique sua voz. É aí que entram os “influenciadores digitais”. Qual é a responsabilidade argumentativa de comunicadores virtuais que são seguidos por milhares, milhões de pessoas ávidas por consumir o seu conteúdo que dita comportamentos e que formata o seu ato de pensar, mesmo que esse conteúdo não tenha muito a dizer? Por sorte vivemos em uma democracia e a escolha é um direito assegurado, porém, quando vivemos em uma sociedade com um olhar cada vez menos crítico sobre a sua realidade, que é bombardeada por notícias falsas e manipuladas o tempo todo e com um entendimento coletivo muito superficial sobre o seu próprio mundo, não há muito espaço para escolhas. Mas, para nossa sorte, existem bons conteúdos que resistem a massificação do senso comum.
Perdemos a capacidade de pensar? Em um mundo onde um projeto de poder cria um apartheid intelectual onde, de um lado estão os pouquíssimos que tem acesso a construção da intelectualidade e dos meios de produção que impactam quase a totalidade da população e, do outro, uma sociedade que, cada vez mais, vê o seu acesso ao direito de pensar sendo usurpado. Tudo pensado para que continuemos a achar que temos algum controle sobre as nossas decisões…
Esse “admirável mundo novo” onde é praticamente proibido se expressar em mais de 140 caracteres e em vídeos maiores de um minuto, onde frases de autoajuda se multiplicam em perfis que nos dizem o que fazer o tempo todo, onde pessoas sem qualquer conhecimento além dos grupos de zap se sentem capazes de palestrar sobre assuntos que desconhecem completamente, onde “gênios” que tem quase nada a dizer, pautam o comportamento de milhões de seguidores e, por fim, nessa distopia muito bem pensada, a responsabilidade argumentativa é praticamente inexistente e trabalha arduamente para nos privar daquilo que, fundamentalmente, nos torna humanos: a nossa capacidade de pensar. Pense nisso.
*Marco Rocha é biólogo, professor, palestrante, comunicador e pesquisador com mestrado em Biologia celular (Fiocruz), Doutorado em Biotecnologia Vegetal (UFRJ e University of Ottawa/Canadá), com Pós-doutorado em Plantas medicinais com atividade antiviral (Fiocruz), com dezenas de artigos e capítulos de livros publicados em literatura científica. Professor universitário a mais de vinte anos, atuando nos cursos da área de saúde das universidades públicas (UFF e UFRJ) e nas principais universidades privadas do Rio de Janeiro. Marco Rocha também é ator, escritor, comunicador e administra as mídias sociais @aquipensando01 onde promove divulgação científica, reflexões sobre o cotidiano, discussões sobre etarismo e ativismo antirracista. Autor dos livros @aquipensando01 – coleção instapoetas e co-autor do livro Pretagonismos.
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