Apesar de já consolidados os avanços na inclusão de grupos historicamente excluídos do ensino superior por meio das cotas, essa é uma política em constante aprimoramento. Dez anos depois da publicação da Lei 12.711, ainda é preciso garantir legitimidade aos processos seletivos, honrando a luta do movimento negro pelo direito às vagas.
Na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), as denúncias de fraudes começaram a surgir em 2018. Antes disso, apenas um pedido foi registrado pela ouvidoria. A pró-reitora adjunta de Graduação, Beatriz Farah, lembra que, no início da implantação do sistema de cotas para pessoas negras e indígenas, a Instituição acreditava que os estudantes optariam adequadamente pelo grupo ao qual pertenciam. A exemplo de todas as instituições federais de ensino superior, era utilizada apenas a autodeclaração firmada pela assinatura do ingressantes.
Todas as denúncias formalizadas foram investigadas por meio de processo de sindicância. Paralelamente a essa apuração, passaram a ser desenvolvidas atividades formativas sobre a temática para docentes e TAEs, visando o aprofundamento de conhecimento e também a ampliação do quadro de pessoas preparadas para as análises.
Diante da situação, a Universidade passa a discutir a criação de procedimentos de verificação das condições de ingresso de pessoas com deficiência, negros e indígenas, por meio das bancas de heteroidentificação. “Esse fluxo contribuiu tanto para a consolidação de uma política de análise complementar à autodeclaração apresentada pelos candidatos como também para a redução das denúncias de fraudes”, explica Beatriz.
O resultado da implementação das bancas pode ser visto nos números apresentados pela Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) – apenas duas denúncias foram formalizadas entre 2021 e 2022, ao passo que entre 2018 e 2020 foram 349. Segundo a pasta, o número permaneceu alto em 2019 e 2020 mesmo com as bancas já em funcionamento, porque os estudantes alvo das denúncias ingressaram nos anos anteriores. Todos os casos foram avaliados pelas comissões de sindicância, sendo a grande maioria julgada improcedente. Nos processos, verificou-se que os denunciados ou membros da linha de ascendência direta tinham o fenótipo racial.
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Bancas de heteroidentificação
Segundo o diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, as bancas de heteroidentificação são uma conquista do movimento negro e motivo de um intenso trabalho de aperfeiçoamento e pesquisa, dada a complexidade das relações raciais no Brasil.
“Oficialmente, o país, por meio de pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), classifica as pessoas pela cor da pele: branca, preta, parda, amarela e, embora não seja uma cor, indígena. Essa seria uma classificação de ‘marca’, utilizando uma categoria do sociólogo Oracy Nogueira. Já em outros países, como os Estados Unidos, essa classificação é determinada pela ‘origem’, levando em consideração a ascendência e não características fenotípicas”, explica Oliveira. Para além da cor da pele, o movimento negro entende a categoria “negro”, compreendendo-a como o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, também como pertencente à política de cotas, conceito referendado pelo Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288, de 20 de julho de 2010).
O papel da Diaaf e das bancas e comissões de heteroidentificação, portanto, tem sido avaliar supostas fraudes que chegam através da Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas e verificar a veracidade da autodeclaração dos candidatos e candidatas ingressantes nos cursos de graduação e pós-graduação durante as matrículas.
Essa atuação vem sendo ampliada por meio de cursos de formação e capacitação e da criação de comissões internas em três esferas: graduação, pós-graduação e concursos públicos. “Os dados que serão trabalhados pelas comissões nos darão a possibilidade de uma avaliação sobre as cotas para além dos simples dados quantitativos”, ressalta Oliveira.
Movimentos sociais se pronunciam
Quem reforça a fala do representante da Diaaf é Marilda Simeão, presidente do Conselho Municipal para a Promoção da Igualdade Racial (Compir), órgão de assessoria, planejamento e consultoria do município, vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF). Ela também é cofundadora do Movimento Negro Unificado (MNU) e afirma que a implantação das políticas de ações afirmativas e das comissões e bancas de heteroidentifcação é resultado de anos de luta dos movimentos sociais organizados.
“Toda e qualquer lei existe a partir das nossas lutas. Há muito tempo, falamos sobre representatividade e ocupação de territórios pelo povo negro”, destaca Marilda, reforçando a necessidade das denúncias às fraudes dos sistemas de cotas. “Sabíamos, desde sempre, que as fraudes poderiam acontecer, pois vivemos em um país que tem a corrupção em sua gênese. Além do mais, os brancos acreditam que estamos retirando o direito deles de entrar na universidade. Então, cabe a nós fiscalizar e, aos órgãos responsáveis, punir.”
Marilda destaca a questão do colorismo como um fator complexo para as análises realizadas pelas bancas de heteroidentificação. “Considerando a África como o primeiro continente, devemos pensar que todos temos ancestrais africanos. Viemos todos da mesma árvore genealógica. E isso acarreta no fato de que nem todos os negros tem pele retinta. Temos a questão do colorismo, temos os pardos, que são fruto do estupro do povo preto e que também devem reinvidicar os seus espaços dentro da universidade”, comenta.
Em contraponto, o aluno de Jornalismo da Faculdade de Comunicação (Facom) da UFJF, Alexandre de Assunção Pinto, acredita na utilização do fenótipo do candidato como critério único para a heteroidentificação. “O estudante vê claramente a importância disso quando, na sala de aula, em seus cursos ou institutos, em todos os lugares, encontra várias pessoas com fenótipo branco conseguindo ocupar as vagas destinadas às cotas raciais”.
Ele é membro da Frente Preta, movimento de pessoas negras em prol da permanência, equidade de posições e oportunidades, a valorização da cultura negra. O discente explica que, atualmente, a Frente vem sendo reestruturada, visto que os trabalhos sofreram com o afastamento de seus participantes durante o período da pandemia da Covid-19. Em 2018 e 2019, quando ainda não existiam as bancas de heteroidentificação, o movimento, junto ao Diretório Central dos Estudantes (DCE), foi acionado por muitos alunos e candidatos nos processos seletivos da UFJF para formalizar os pedidos de denúncias de fraudes. Porém, como destaca Alexandre, muitos processos não foram levados adiante justamente pelo fenótipo do aluno não ser o critério principal de análise, mas sim a possibilidade de comprovação do fenótipo na ascendência familiar.
E como funciona?
Todos os critérios de avaliação das bancas estão definidos no regulamento de matrícula e, em uma primeira etapa, há a averiguação dos ingressantes levando em consideração somente aspectos fenotípicos. Ou seja, características físicas visíveis do indivíduo, tais como a cor da pele, a textura dos cabelos, o formato do rosto, do nariz e lábios. Todos esses elementos combinados permitem validar ou invalidar as condições autodeclaradas pelos candidatos e candidatas.
“Os(as) candidatos(as) convocados devem se apresentar na sala virtual, disponibilizada no site da Coordenadoria de Assuntos e Registros Acadêmicos (Cdara), munidos de documento oficial com foto e em um ambiente com boa iluminação. Em caso de problemas técnicos, o ingressante deverá prontamente manifestar-se, no mesmo dia em que foi convocado, através do e-mail institucional, solicitando reagendamento”, explica Beatriz Farah.
Toda análise é gravada em áudio e vídeo, sendo o procedimento realizado por três membros designados pela Prograd. O não comparecimento às bancas virtuais de heteroidentificação acarreta no cancelamento imediato da matrícula.
Candidatos negros e negras podem entrar com recurso, que será apreciado mediante apresentação de documentos comprobatórios da condição do próprio ingressante, bem como de seu pai e mãe, que serão também analisados. No caso de indígenas, existe a avaliação dos documentos que comprovem a condição de pertencimento étnico. Já para as pessoas com deficiência, as avaliações ocorrem por uma comissão mediante apresentação de laudo médico.
UFJF cumpre recomendações de estudo nacional
As ações promovidas pela UFJF nos últimos anos estão em acordo com um conjunto de recomendações apontadas pela “Avaliação das Políticas de Ação Afirmativa no Ensino Superior no Brasil: Resultados e Desafios Futuros”, investigação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e pela organização Ação Educativa, divulgada em julho de 2022.
O levantamento teve como objetivo contribuir para a avaliação dos efeitos e resultados da política de cotas, utilizando como estudos de caso seis universidades federais. Entre os dados apresentados, chama a atenção o número de ingressantes nas universidades federais por tipo de vaga acionada. Em 2010, 90% dos matriculados faziam parte da ampla concorrência, ao passo que, em 2019, esse grupo passa a representar 61%.
A legislação prevê que, pelo menos, 50% das vagas sejam ocupadas por estudantes de escolas públicas, àqueles com renda bruta familiar inferior a 1,5 salário mínimo, a negros e indígenas ou a pessoas com deficiência. Mas, muitas vezes, esse número não é efetivado pela falta de aprovados nesses grupos de acesso. Na UFJF, por exemplo, os cotistas são 47%. Por isso, a luta pelo acesso ao ensino superior por grupos historicamente excluídos continua sendo um grande desafio, seja enfrentando os fraudadores seja fazendo a população entender seus direitos.
“Temos que reforçar que as cotas não representam um problema exclusivamente social, como diversos setores mais conservadores, com apoio de alguns grupos progressistas, defendem. Resumindo, as cotas parecem estar consolidadas no imaginário brasileiro, mas ainda não para a população negra, o que nos permite dizer desse racismo que é intrínseco em nossa sociedade. Por isso, precisamos ter um trabalho de conscientização junto aos estudantes do ensino médio das escolas públicas, mostrando a eles que as cotas são um direito, para que mais e mais estudantes negros e pobres possam almejar a entrada nessa Universidade”, afirma Julvan Moreira de Oliveira.
Entre as recomendações propostas pela pesquisa está o fortalecimento e a regulamentação nacional das comissões de heteroidentificação, que também cumprem papel educativo sobre a perspectiva antirracista dentro das instituições públicas de ensino superior, sobretudo a partir do desenvolvimento dos programas de formação de coordenadores, docentes e TAEs.
Foi o que aconteceu na UFJF por meio do curso “Ações afirmativas e heteroidentificação na UFJF”. Durante os meses de maio, junho e julho, dez encontros foram realizados de forma virtual com o objetivo de formar pessoas que compõem ou irão compor as bancadas de heteroidentificação, docentes, TAEs e estudantes de pós-graduação, bem como professores da rede básica de ensino e militantes de movimentos negros e indígenas. Tudo para envolver cada vez mais a comunidade acadêmica e a sociedade em geral no comprometimento com a política de cotas e com as lutas antirracistas.
Como denunciar?
As denúncias devem ser realizadas, preferencialmente, através da Plataforma Fala-Br.
Havendo outras dúvidas a respeito de como realizar denúncias, basta entrar em contato com a Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas da UFJF, através do e-mail ouvidoriaespecializada.diaaf@ufjf.br ou pelo telefone (32) 2102-3380.
Cabe ressaltar que, em nome do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, em respeito aos direitos da personalidade dos investigados e diante do princípio da presunção de inocência, os processos de apuração de supostas fraudes ao sistema de cotas tramitam em sigilo, conforme inciso III do artigo 6º da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011).
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