Senado aprova PEC das drogas: disputa entre Congresso e STF prejudica a população negra, dizem especialistas

presos_2-1.webp

O Senado aprovou na última terça-feira (16) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de droga ilícita. Foram 53 Votos contrários e 9 a favor do projeto. A PEC ainda será votada na Câmara dos deputados. O Notícia Preta entrevistou especialistas no tema para entender o que muda na lei e na prática.

Derê Gomes, que é fundador e coordenador da Ação Negra e diretor da Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), acredita que há uma disputa aberta entre o Congresso e o STF, que vai muito além da descriminalização. “No meio dessa briga fica o povo brasileiro, em especial o povo preto que é mais criminalizado, independente da quantidade do porte”, disse Derê.

A PEC

Atualmente é proibido portar qualquer quantidade de droga ilícita, de acordo com a Lei 11.343/06. A coordenadora da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), Ingrid Farias, explica que a PEC do Senado altera diretamente a Constituição Federal, incluindo no artigo 5º da Constituição, estabelecendo que a posse ou porte de qualquer quantidade de drogas é crime.

“A lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, diz trecho do texto da PEC.

O advogado criminalista Fábio Almeida, acredita que “chega a ser irônico no artigo que trata das garantias individuais, incluir um inciso estabelecendo que a posse ou porte de qualquer quantidade de drogas é crime”, disse ele.

O STF

Está em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF) um julgamento que pode regulamentar a quantidade de drogas que diferenciaria traficante de usuário, o placar está com 5 votos a favor da autorização do consumo próprio e um voto contrário. Houve propostas de 25 a 100 gramas como quantidade mínima entre os magistrados e há os que defendem que o Congresso defina o limite.

Derê explica que usuário já não é criminalizado no Brasil por decisão do próprio Congresso Nacional. O que o STF discute é uma dosimetria para diferenciar usuário de traficante. “O STF não pode e nem vai descriminalizar o usuário”, afirma.

“O problema é que essa discussão está contaminada por um Congresso omisso na resolução das grandes demandas do país, que sente seu protagonismo ser prejudicado pelo STF. Essa disputa não vem de agora, mas vem se acentuando”, diz Derê.

O advogado criminalista concorda com a posição de Derê e afirma que a questão aparentemente é política, decorrente do atual embate entre o Congresso e o STF, que está em vias de declarar a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06.

“O objetivo declarado é impedir que o STF promova a descriminalização por meio da declaração de inconstitucionalidade. Se a Constituição afirma que é crime portar ou possuir entorpecentes, não se pode mais dizer que é inconstitucional”, diz Fábio Almeida.

Especialistas afirmam que as pessoas negras serão as mais prejudicadas com a medida – Foto: Arquivo/Agência Brasil.

População negra encarcerada

Derê chama atenção para estudo da Agência Pública, que a partir de pesquisa de mais de 4 mil sentenças, mostra que pessoas negras são mais condenadas por tráfico, mesmo com menos drogas apreendidas. A maioria dessas apreensões são com uma quantidade inferior a 100g e 84% dos processos a única testemunha é o policial que efetuou a prisão.

“Ao invés de brigar com o STF, o Congresso deveria se debruçar sobre a mudança desse quadro relatado”

A coordenadora da RENFA concorda que a Lei11.343/06 e a PEC do Senado na prática encarceram mais pessoas negras no Brasil. Segundo a organização, hoje o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo e há a estimativa de que pelo menos 30% dessa população está presa por crimes ligados as drogas, no caso das mulheres esse número sobre para 62%.

Ingrid entende que dentro do sistema de justiça existe uma seletividade penal, as pessoas que são encarceradas com quantidades pequenas.

“São pessoas negras, pobres, que vivem em territórios onde há violação de direitos, então sem dúvida nenhuma essa PEC vai criminalizar ainda mais as pessoas que já estão no foco dessa criminalização, hoje quem define se a pessoa é traficante ou usuário é o policial e com a PEC o policial nem precisa mais definir isso, na verdade todos passariam a ser criminosos caso seja abordado fazendo uso de qualquer substancia“, explicou Ingrid.

O criminalista Fábio Almeida diz que, em termos práticos, nem a Lei atual e nem a PEC alteram o cenário atual para a população negra, “nesse momento nada muda, os brancos poderão continuar consumindo sem preocupação”, ironizou.

Mas Fábio alerta que “não é raro vermos os filhos da classe média considerados usuários com grande quantidade de drogas em casa, sob o argumento de que estariam armazenando para uso pessoal, e um garoto pobre morador de comunidade com um papelote no bolso sendo acusado de tráfico de drogas porque, no entendimento do policial, faria a entrega a alguém”, diz o advogado.

O criminalista explica que o Rio de Janeiro, em especial, possui uma complexidade maior em virtude de uma súmula editada pelo Tribunal de Justiça, a Súmula 70 que, em síntese, define que é possível uma condenação criminal com base exclusivamente na palavra do policial.

“Assim, se o policial disse que viu o garoto levando o papelote para um comprador, mesmo se a alegação não for verdadeira, invariavelmente o resultado será a condenação”, disse.

Descriminalização e diferenciação entre usuários e traficantes

Para Derê Gomes, a descriminalização e um limite para a quantidade que diferencie usuários e traficantes é uma medida paliativa, que num curto prazo pode sim ter algum efeito positivo, mas seria preciso muito mais para resolver a questão do encarceramento negro. Para ele, o correto é tratar a questão das drogas como caso de saúde pública e não como caso de polícia.

“A guerra as drogas é uma política fracassada sob todos os ângulos possíveis. Para complementar temos uma polícia violenta e descontrolada, um Ministério Público omisso e uma Justiça conivente com o encarceramento de corpos negros. E no final, é sobre isso que estamos falando. O sistema penal brasileiro foi criado como um mecanismo de controle sobre corpos negros, desde a lei da vadiagem, até os novos mecanismos como reconhecimento facial e similares. Precisamos ir na direção oposta”, disse Derê Gomes.

Fábio concorda e ressalta que o tráfico existe porque é proibido, “essa questão é difícil de ser enfrentada porque é polêmica, mas estamos na contra mão do mundo, gastando recursos com aparato policial, carcerário, impedindo tratamento de dependentes e deixando de recolher tributos por uma questão cuja repressão já se mostrou ineficaz”, afirmou.

Acesse nosso Grupo de WhatsApp clicando aqui.

Thayan Mina

Thayan Mina

Thayan Mina, graduando em jornalismo pela UERJ, é músico e sambista.

Deixe uma resposta

scroll to top