Por Kito Simon
Nesses 131 de “abolição” da escravidão pela Lei Áurea, o povo negro passou por diversos momentos em que teve de lutar, se organizar e resistir. Desde à tentativa de uma vida totalmente autônoma nos quilombos até à promulgação da Lei que criminalizou (muito tardiamente) o racismo, a história do povo preto no Brasil é de resistência. Só que, antes, eram literalmente braços e punhos em luta; hoje, se trava uma batalha simbólica, no campo intelectual e das ideias, nas ruas e nas mídias. O inimigo é a velha elite atrasada, racista, escravista, e que encontrou no fenômeno da pós-verdade uma forma cruel de sacramentar a institucionalização da negação do racismo na sociedade brasileira.
Pós-verdade são basicamente notícias falsas, fatos adulterados e versões da história carregadas de crenças pessoais, paixões e visões ideológicas, portanto, esvaziadas de objetividade. O termo apareceu com força total em 2016, quando o mundo se deparou com um mentiroso assumindo a presidência dos EUA. Durante a campanha eleitoral, Donald Trump disparou dezenas de mentiras. Entre elas, disse que o então presidente Obama era um dos fundadores do Estado Islâmico. Trump também disse que e George Bush estava por trás do 11 de setembro.
Em 2016, a Revista The Economist publicou o emblemático artigo “A arte da mentira”, e cunhou o termo Post-Truth politic , ou pós-verdade política. Denunciou uma série de acontecimentos internacionais em que o uso de mentiras teria sido determinante para a mudança dos rumos da história. Trump (e seu Twitter) era destaque.
Mais do que nunca o tempo é de resistir, para que uma mentira cruel como a negação do racismo não se torne verdade”
No Brasil também vimos que vencer eleições em cima de Fake News dá certo. Bolsonaro é presidente. Kit gay, mamadeira erótica são algumas mentiras que viraram fato. Mas parece que o “mito” é mais afeito à pós verdade, ele gosta de rever e alterar a história. Já disse que nunca houve ditadura militar. Afirmou recentemente que não existe racismo no Brasil, negando um fato social inquestionável.
Não podendo mudar o histórico de injustiça enfrentado pelo povo negro, Bolsonaro, fazendo o jogo das elites, tenta alterar a percepção da sociedade sobre uma verdade, neutralizando o racismo ou simplesmente negando sua existência. Com isso, desconstrói a identidade do povo preto, para tirar direitos.
Para justificar a redução (ou o fim) das cotas raciais, Bolsonaro responsabilizou os negros pela escravidão dos próprios negros: “O português nem pisava na África. Foram os próprios negros que entregavam os escravos”, disse Bolsonaro no Programa Roda Viva, durante a Campanha. Ocultou que a diáspora africana foi o maior deslocamento humano da história, pelas mãos dos europeus. Quase 5 milhões de negros vieram escravizados para o Brasil. 12,5 milhões para as Américas. Sem contar os cerca de 600 mil que nem chegaram, foram lançados ao mar.
O racismo, tal como a escravidão e a ausência do Estado em políticas de reparação das desigualdades com relação ao povo negro ao longo dos últimos 130 anos, é algo inquestionável. Mas é mais fácil desconstruir, questionar, de acordo com ideologias vazias, que reconhecer.
Mais do que nunca o tempo é de resistir, para que uma mentira cruel como a negação do racismo não se torne verdade. Assim como “nosso cabelo é duro”, e “preto é melhor para fazer o trabalho pesado” foram verdades até pouquíssimo tempo. O que fazer? Enfrentar. Mostrar a verdade. Falar abertamente sobre o racismo. Denunciar. Não se submeter, em nenhum lugar, por motivo algum. A mentira deles é que nos mata – a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Em tempos de pós verdade, expor a ferida aberta com inteligência é a arma mais eficaz; afinal de contas, a mídia social onde se propaga a mentira, também se propaga a verdade.