Com mais de 72 milhões de pessoas inadimplentes no país, dados da Serasa mostram que o início do ano aprofunda desigualdades e atinge com mais força a população negra, mais exposta ao crédito caro e à renda instável.
O calendário muda, mas as contas permanecem. Para milhões de brasileiros negros, o fim do ano não representa alívio financeiro nem ponto de recomeço. Pelo contrário: janeiro chega como um mês de pressão, marcado pelo acúmulo de dívidas, contas atrasadas e novas cobranças. Não se trata de um problema individual ou de “falta de planejamento”, mas de um padrão estrutural que combina desigualdade racial, crédito caro e renda insuficiente.
Dados da Serasa indicam que o Brasil encerra o ano com mais de 72 milhões de pessoas inadimplentes. O número costuma crescer nos primeiros meses do ano, especialmente entre janeiro e março, quando despesas concentradas pressionam o orçamento das famílias. O valor médio das dívidas ultrapassa 4,5 mil reais, e os principais responsáveis pela inadimplência seguem sendo cartão de crédito, contas básicas e empréstimos pessoais.
Esse cenário afeta de forma desproporcional a população negra. Segundo o IBGE, pessoas negras têm rendimento médio significativamente menor do que pessoas brancas e estão mais expostas ao trabalho informal e à instabilidade de renda. Isso significa menos margem para absorver gastos extras e menor capacidade de poupança ao longo do ano. Quando chegam as despesas de dezembro e as cobranças de janeiro, o crédito passa a ser a única alternativa para manter o básico.

O fim do ano concentra gastos que não podem ser adiados, como alimentação mais cara, transporte, contas de consumo e, em muitos casos, apoio financeiro a outros membros da família. Em janeiro, entram em cena impostos como IPVA e IPTU, material escolar, matrícula, reajustes de tarifas e serviços essenciais. Para quem vive com orçamento justo, a soma dessas despesas empurra o uso do cartão de crédito e de empréstimos de curto prazo.
O problema é que o crédito disponível para essa parcela da população é, em geral, o mais caro. Dados do Banco Central mostram que o Brasil mantém taxas de juros elevadas para pessoas físicas. Em 2024, os juros do cartão de crédito rotativo ultrapassaram 430 por cento ao ano, enquanto o cheque especial permaneceu acima de 130 por cento. Dívidas assumidas para atravessar o início do ano rapidamente se transformam em compromissos de longo prazo.
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Levantamentos do SPC Brasil mostram que famílias de baixa renda comprometem uma parcela maior do orçamento com dívidas do que famílias de renda mais alta. Além disso, trabalhadores negros têm menos acesso a modalidades de crédito mais baratas, como financiamentos com garantia ou linhas bancárias com juros reduzidos. O resultado é um ciclo no qual o crédito deixa de ser instrumento de planejamento e passa a funcionar como mecanismo de sobrevivência.
O Banco Central aponta que mais de 77 por cento das famílias brasileiras estão endividadas, considerando financiamentos, cartões e empréstimos. No entanto, esse dado esconde desigualdades profundas. Enquanto famílias de maior renda conseguem renegociar dívidas, acessar descontos ou reorganizar o orçamento, grande parte da população negra enfrenta juros altos, renegociações desfavoráveis e restrições de acesso ao sistema financeiro formal.
Janeiro, portanto, não cria o endividamento. Ele apenas torna visível um modelo econômico que transfere o risco para as famílias, naturaliza o uso do crédito caro para cobrir despesas básicas e penaliza quem já vive em situação de maior vulnerabilidade. Para brasileiros negros, entrar no novo ano endividado não é exceção, mas consequência direta de um sistema que combina desigualdade racial, concentração de renda e um mercado de crédito que lucra com a urgência.
Quando o ano acaba e as contas ficam, o que se revela não é apenas uma dificuldade momentânea, mas a persistência de um ciclo que se repete a cada janeiro, reforçando desigualdades que o Brasil ainda insiste em não enfrentar









