*Material publicado originalmente no site Amazônia Real, mídia que combate desmatamento na Amazônia e terras indígenas, e republicado em parceria com o Notícia Preta, com a devida autorização
*Por Leanderson Lima
Mesmo derrotado nas urnas e cumprindo de forma melancólica os últimos dias de seu governo, recluso, em silêncio e omisso diante dos atos golpistas de seus seguidores, Jair Bolsonaro (PL) preparou uma última “bomba” para “coroar” quatro anos de ataques aos povos indígenas e à proteção ambiental de seus territórios.
Publicada no dia 16 de dezembro deste ano no Diário Oficial da União (DOU), a Instrução Normativa de Nº 12, de 31 de outubro de 2022, passa a autorizar o “manejo florestal” dentro de territórios indígenas, e liberando inclusive a participação de não-indígenas neste processo.
Lideranças indígenas e ambientalistas ouvidos pela reportagem dizem que a decisão é inconstitucional por não ter ouvido os indígenas e fere o usufruto dos povos originários.
A IN aprova ”as diretrizes e os procedimentos para elaboração, análise, aprovação e monitoramento de Plano de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) com caráter comunitário, localizados ou desenvolvidos no interior de Terras Indígenas (TI), cujos empreendedores sejam organizações indígenas ou organizações de composição mista”.
Na prática, ela libera a exploração de madeira para fins econômicos, atividade que na IN é descrita como “viabilidade econômica”.
Para o líder indígena, ativista e assessor jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Yura Marubo, a Instrução Normativa é mais um atentado contra as terras indígenas. Segundo Yura, a experiência é comprovadamente ineficaz.
“Nós temos outras áreas que tentaram fazer esse manejo e não deu certo. Tentaram fazer isso em todos os biomas que existem e que não são em terras indígenas e não deu certo. E por que? Não há nenhum tipo de controle, mesmo o Brasil possuindo uma das legislações mais modernas em relação ao meio ambiente, nós não temos poder de fiscalização”, declarou à Amazônia Real.
Yura Marubo vê a Instrução Normativa publicada nos últimos dias do governo Bolsonaro como uma medida perversa. “Eu li toda (IN). Estou vendo como é perverso. Para quem lê, as palavras são doces na forma como são colocadas, mas na prática, aquilo ali é uma senha de permissão irrestrita para as terras indígenas serem exploradas”, denuncia.
Para a liderança indígena, no lugar de uma IN, o que se faz necessário é uma legislação específica criada em favor dos povos indígenas e da proteção às terras indígenas. “As pessoas que estão por trás desse tipo de normativa são justamente aquelas que não têm compromisso nenhum com o meio ambiente, com a fauna, com a flora e tampouco com os biomas que existem no Brasil”, conclui.
Yura Marubo tem na própria Terra Indígena Vale do Javari, onde nasceu, um exemplo de como a medida pode impactar a floresta, o território e a vida dos povos indígenas.
“A questão do Vale do Javari é uma das mais complexas que existem no Brasil, uma vez que a exploração de madeira na região já vem de praticamente um século e nós sabemos das consequências de qualquer projeto ou de uma Instrução Normativa que atente sobre o uso exclusivo dos povos indígenas em relação ao seu território. Isso vai trazer consequências irreparáveis”, afirma.
“Na verdade, isso está acontecendo no Vale do Javari”, explica. Para Yura Marubo, a IN será um desastre de grandes proporções e precisa ser revogada. “Estão abrindo uma porta para uma ação devastadora dentro das terras indígenas”, finaliza.
A liberação da exploração de floresta em terras indígenas pelo governo Bolsonaro não surpreendeu as lideranças indígenas, mas a decisão foi interpretada como uma provocação. O líder do povo Karipuna, de Porto Velho (Rondônia), Adriano Karipuna, também criticou duramente a nova Instrução Normativa e lembrou que ela fere os direitos dos povos indígenas.
“Esta Instrução Normativa é anti-indígena e preconceituosa, até porque os povos indígenas no Brasil – que são inúmeros -, não foram consultados, desrespeitando o artigo 231 e 232 e também a OIT, que é bem clara no artigo 5, que diz que nenhum direito dos povos indígenas pode ser violado por nenhuma instituição governamental ou de propriedade privada. Isto está bem claro”, afirma.
Adriano Karipuna conta que seu povo convive com as constantes ameaças de madeireiros e grileiros, e que essa IN acaba por dar um empoderamento maior aos invasores de terras indígenas.
A Terra Indígena Karipuna, em Rondônia, é um dos territórios da Amazônia onde a invasão de madeireiros é mais intensa e permanente. Mesmo atuando de forma ilegal, eles retiram madeira no território, sob a omissão dos órgãos de fiscalização, que foram propositalmente sucateados no governo de Jair Bolsonaro.
Por conta desse descaso, Adriano Karipuna conta que a própria população precisa atuar na vigilância do território. “A nossa vigilância e proteção, como diz a Carta Magna, deveria ser feita pelo estado brasileiro, por meio do Ibama, secretarias de meio ambiente nos estados, Polícia Federal, Batalhão Ambiental, só que essas instituições não estão cumprindo com os seus papéis. Então nós é que precisamos vigiar os territórios, mesmo não tendo poder de polícia”, revela.
A medida também foi criticada pela deputada federal eleita Célia Xakriabá (PSOL-MG). “Mais um absurdo do desgoverno a apenas duas semanas do seu fim. O presidente da Funai liberou a exploração de madeira em terras indígenas como ‘manejo florestal‘ inclusive por não indígenas. É a destruição das florestas e é urgente que seja revogado”, disse em uma rede social.
O advogado indígena Eloy Terena também se posicionou contra a Instrução Normativa e acredita que ela será revogada pelo próximo governo.
“No apagar das luzes, o presidente da Funai publica Instrução Normativa para regular exploração de recursos madeireiros em terras indígenas e abre possibilidade para atuação de não indígenas. Este ato fere o usufruto exclusivo previsto na Constituição. Lula revogará”, escreveu no Twitter.
Em nota divulgada na tarde desta sexta, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirma que a “configura uma resposta do governo atual à demanda dos madeireiros, visando o incentivo à extração de madeira nas terras indígenas, atividade que por sua própria natureza, não pode ser realizada de forma sustentável”.
A Apib diz que “o decreto afronta o princípio da consulta e consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas” (leia a nota).
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira também divulgou nota pública afirmando que a IN é “mais uma etapa dos diversos esforços empreendidos pelo atual governo para burlar os fundamentos da Constituição Federal de 1988 e da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho que transversalizam o direito originário dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam”.
Para o geógrafo e ecólogo Carlos Durigan, a nova Instrução Normativa é mais uma tentativa de manter a porteira aberta para “a boiada continuar passando”.
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“Inclusive, ao permitir a abertura do manejo para não-indígenas nos territórios, sem consulta livre prévia e informada, vai contra diversas diretrizes assumidas em acordos e provavelmente ainda é inconstitucional”, analisa. Durigan também acredita que a derrubada da IN estará na lista do “revogaço”, anunciado pela equipe de transição do novo governo.
Para a especialista em políticas públicas da organização Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama Suely Araújo, a Instrução Normativa publicada é juridicamente nula e, no mérito, inaceitável.
“Colide com o art. 231 da Constituição e com o Estatuto do Índio, foi editada por autoridades que não têm legitimidade para legislar sobre esse conteúdo e não foi objeto de avaliação de impacto de seus efeitos. Um ato injustificável no final de governo. Teremos de ficar atentos para seu possível uso para validar projetos nesses últimos 15 dias de governo”, analisa.
Em nota publicada em seu site oficial, a Fundação Nacional do Índio (Funai) diz que estabeleceu, junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), “diretrizes e os procedimentos para o manejo florestal sustentável em Terras Indígenas”.
Segundo a nota, “a atividade de manejo florestal poderá ser desenvolvida por organizações indígenas ou organizações de composição mista, com divisão das tarefas e dos ganhos entre os integrantes da comunidade”. A Funai diz que a normativa prevê ainda a consulta prévia aos indígenas.
Para a Funai, a medida era uma “reivindicação antiga de diversas etnias e resultará em mais autonomia para os indígenas, possibilitando ampliar a geração de renda nas aldeias de forma sustentável”. Para o órgão governamental, a “regulamentação também ajudará a combater as atividades de desmatamento ilegal em terras indígenas”.
Sobre o autor: Leanderson Lima é graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Nilton Lins. Tem MBA executivo em Gestão de pessoas e coaching, pelas Faculdades Idaam. Com 18 anos de experiência profissional, atuou por veículos como Jornal A Crítica, Correio Amazonense, Jornal do Commercio e Zero Hora (RS). Na televisão trabalhou na TV A Crítica, Rede TV! Manaus, e na rádio A Crítica, como comentarista. É o vencedor do Prêmio Petrobras de Jornalismo de 2015, com a reportagem “Chute no Preconceito”
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