Neste 19 de abril, data em que é celebrado o Dia dos Povos Indígenas, o Notícia Preta conversou com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), que representa 172 povos da região, sobre as pautas prioritárias da comunidade indígena, e em especial sobre o Marco Temporal, que atualmente é tema de uma conciliação convocada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
“Somos absolutamente contrários à lei e a mesa de conciliação, afinal direitos não se negociam. O Marco Temporal representa uma grave ameaça aos direitos originários dos povos indígenas. A lei tenta impor uma lógica injusta e inconstitucional, ao exigir que estivéssemos fisicamente em nossos territórios no dia 5 de outubro de 1988 — desconsiderando os inúmeros casos de expulsões, violência e remoções forçadas que marcaram nossa história“, afirma a liderança.
O Congresso Nacional promulgou o complemento da lei do marco temporal para demarcação das terras indígenas em janeiro de 2024, em meio a protestos, mas a situação corre no STF, que no ano anterior, havia decidido que a tese é inconstitucional. De acordo com o Censo do IBGE de 2022, o Brasil tem 1.693.535 pessoas indígenas, o que corresponde a 0,83% da população total do país.

De acordo com a COIAB, já que a Constituição de 1988 reconhece o direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionais, o Marco Temporal “é uma afronta direta à Constituição e aos tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil assinou“.
A programadora e artesã Ywmalay Pataxó, que é graduada em Humanidades pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e atualmente estudante de Direito pela mesma instituição, acredita que “manter o Marco Temporal seria, na prática, legalizar essas injustiças históricas e abrir caminho para mais invasões, desmatamento e conflitos com interesses econômicos como o agronegócio, a mineração e a especulação fundiária e até a retirada de direitos já conquistados“.
Na luta contra o Marco, Ywmalay aponta que o povo indígena não está parado. A COIAB afirma que há uma articulação em conjunto com outras instiuições, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(APIB), além da mobilização nas bases e nos territórios, incidência direta junto ao STF, ao Congresso e ao Executivo, além de ações de comunicação para ampliar a conscientização da sociedade brasileira e internacional sobre o assunto.
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Essas estratégias também são apontadas por Ywmalay Pataxó, que reforça a ocupação do debate público para tratar do tema. Mas não apenas isso. “Outra estratégia importante é o fortalecimento jurídico e institucional das organizações indígenas, com a formação de lideranças jovens, advogados indígenas e representantes capacitados para atuar nos espaços decisórios“, explica a estudante de direito, que meciona a colaboração com ONGs e universidades como aliadas nesse processo.
“A mensagem que sempre estamos deixando claro, que não se trata apenas de terra, mas de memória, dignidade, sobrevivência cultural. Defender nossa terra é defender a vida, a cultura, o futuro e o meio ambiente que beneficia não apenas os povos originários dessa terra, beneficia toda a sociedade e mundo“, desabafa a programadora.
Os estados com a maior parte da população indígena do país são o Amazonas (490,9 mil) e a Bahia (229,1 mil), com 42,51% do total, juntos, também segundo o IBGE.
Atuação do Congresso e do Exceutivo
A COIAB aponta que o Congresso tem “sistematicamente avançado em projetos que representam verdadeiros retrocessos aos direitos dos povos indígenas”, o que é motivo de preocupação para os povos originários. “Esses ataques não são isolados. Eles fazem parte de uma estratégia que busca enfraquecer os direitos territoriais, abrir nossos territórios para o agronegócio, o garimpo ilegal e grandes empreendimentos“, denuncia.
A visão é compartilhada pela estudante de direito, que afirma que com as decisões do Congresso, “fica claro que existe uma tendência, por parte de vários parlamentares, de priorizar interesses econômicos, como o agronegócio e a mineração, mesmo que isso signifique matar e desrespeitar direitos constitucionais dos povos originários“.

Ambos, apesar de reconhecerem o avanço da pauta dentro do Executivo, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas e ações emergenciais em territórios em crise, a COIAB aponta que é “preciso ir além das medidas pontuais“,e que o governo “precisa se posicionar com mais firmeza“.
Já a programadora, artesã e estudante de Direito, Ywmalay Pataxó reconhece os avanços que chamou de importantes e simbólicos, mas que enfrentam obstáculos. “Na prática, muitas dessas iniciativas esbarram em resistências internas, lentidão burocrática e falta de vontade política concreta para enfrentar os interesses que lucram com a destruição da floresta e o apagamento de culturas inteiras. O que está em jogo é o futuro dos povos indígenas e do planeta como um todo“.
As pautas da população indígena
A COIAB aponta que na área da saúde, o atendimento contínuo com profissionais capacitados e com estrutura básica, é uma das grandes demandas da população, e principalmente, com respeito às formas de cuidado tradicionais. Um demanda também defendida por Ywmalay:
“Há uma demanda muito clara por um modelo de atenção à saúde que respeite os saberes tradicionais e que seja construído com participação direta das comunidades. A saúde indígena precisa ser pensada não apenas como um serviço, mas como um direito que considera os modos de vida próprios de cada povo“, explica.
No âmbito da educação, a COIAB luta por “escolas de verdade nas aldeias, com professores indígenas valorizados, ensino bilíngue e material pedagógico que respeite nossas culturas“, já que segundo a estudante, “a educação deve ser uma ferramenta de fortalecimento identitário, não de assimilação“.
Em janeiro deste ano, grupos indígenas ocuparam a sede da Secretaria de Estado de Educação (Seduc) do Pará, em Belém, lutando contra uma lei estadual que segundo eles, colocava em risco a o acesso à educação em áreas remotas, de populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas.
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E sobre a violência: “O combate à violência precisa de ações concretas, com presença do Estado, escuta das lideranças e fortalecimento das nossas organizações“, diz a COIAB, que também enfatiza a importância de proteger os povos em isolamento voluntário.
Seguindo com o mesmo pensamento, Ywmalay Pataxó aponta: “O 19 de abril não é uma data de celebração isolada, é um momento de visibilidade e resistência. As pautas que os povos indígenas trazem não são novas, mas seguem sendo invisibilizadas. É hora de escutar essas vozes com seriedade, compromisso e respeito“.
Como ajudar a pauta indígena?
A COIAB aponta algumas ações concretas para ajudar:
- Uma delas é apoiar publicamente a demarcação dos territórios indígenas
- Outra é acompanhar e divulgar as campanhas de organizações indígenas e aliadas, como a própria COIAB, atualmente com a campanha “A RESPOSTA SOMOS NÓS” e outras organizações que atuam diretamente na Amazônia.
- Pressionar parlamentares e autoridades para que respeitem os direitos indígenas, denunciem projetos que favorecem o garimpo ilegal, o desmatamento e a exploração predatória, e se posicionem contra a criminalização de nossas lideranças.
- Apoiar financeiramente iniciativas lideradas por indígenas, fortalecer redes de solidariedade e compartilhar nossas histórias, lutas e conquistas nas redes sociais e nas comunidades onde vivem.

Ywmalay Pataxó afirma que uma das formas de ajudar é escutar. “Ouvir as lideranças, compreender as pautas, reconhecer que os povos indígenas não estão apenas lutando por si mesmos. Não dá mais pra repetir estereótipos ou achar que a luta indígena diz respeito só a quem vive nas aldeias. Essa é uma luta de todos nós“.
Além disso, Ywmalay Pataxó aponta que se informar e amplifcar as vozes, e não “dar voz” a ninguém, já que os povos indígenas “já têm voz“. E são essas vozes, que apesar das diferenças culturais e geográficas, ecoam a favor de justiça.
“O que vejo é que, dentro do movimento indígena, há um esforço muito bonito e potente de respeitar essas diferenças. Não se trata de apagar as diferenças em nome de uma causa única, mas de fortalecer uma aliança que reconhece a pluralidade dos povos originários. É esse equilíbrio entre unidade e diversidade que torna o movimento indígena tão forte e tão necessário no Brasil de hoje“, ressalta a estudante.