O índice de certificação de terras quilombolas, em 2020, foi o menor registrado desde o início do processo de reconhecimento certificado desses territórios. Os dados são de uma pesquisa publicada, neste mês de abril, pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e pela Transparência Brasil em parceria com a agência de dados Fiquem Sabendo. O levantamento revela, ainda, que em 2019, a movimentação de processos de titulação de terras quilombolas foi a menor registrada desde 2005, quando as instituições iniciaram o monitoramento. Os registros demonstram que, desde o início do atual governo, apenas três territórios quilombolas foram titulados.
Para a quilombola Kátia Santos Penha, da comunidade Divino Espírito Santo que integra o quilombo Sapê do Norte, localizado no município de São Mateus (ES) e uma das coordenadoras da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), a queda dos números de certificação e titulação são um projeto político que envolve o desmantelamento de órgãos que realizavam o serviço de regularização fundiária e a nomeação de gestores que não se interessam pela manutenção dos quilombos. “Desde 2019 quando a gente olha para o orçamento votado para as políticas de regularização fundiária notamos que não existe mais orçamento. Não se tem mais um corpo técnico dentro do Incra, o instituto foi desmantelado”, observa Penha que ainda completa: “A Fundação Palmares também, entraram pessoas numa linha que não é ligada a defesa do movimento negro e a defesa do povo negro”.
A pesquisa da Abraji confirma o desmantelamento por meio do orçamento ao apontar que, em 2021, o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) que foi enviado pelo governo federal para aprovação no Congresso para o ano de 2021, ainda não aprovado pelo legislativo, contava com uma previsão de corte de mais de 90% na verba destinada às certificações, titulações e indenizações de territórios quilombolas. Já em relação à Fundação Cultural Palmares (FCP), o órgão tem acumulado cortes orçamentários. Em 2019 o orçamento anual era de R$25,9 milhões, o menor em dez anos e, na atual proposta do governo, pode ser de R$9,6 milhões. Tais valores são representativos porque o reconhecimento das terras quilombolas estão atreladas a esses dois órgãos.
Processo de titulação e certificação de terras quilombolas no Brasil
O direito à regularização fundiária das terras quilombolas, que garante a essas comunidades o título de propriedade dos territórios que ocupam, é garantido por lei, no Brasil, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. No Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) está determinado: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Ainda de acordo com a legislação brasileira, o processo de reconhecimento de territórios quilombolas tem início a partir da autodefinição, que é o reconhecimento das comunidades por parte das próprias e, de seus integrantes, como quilombos. A etapa seguinte, a certificação dos territórios, a primeira etapa formal no processo de regularização fundiária, é de atribuição da Fundação Cultural Palmares. De acordo com a pesquisa da Abraji e da Transparência Brasil, no ano de 2020, foram realizadas 29 certificações pela fundação, o que corresponde a 58% a menos do que o registrado em 2019.
O relatório também revela que, em 2020, a taxa de resolutividade de processos de certificação pela fundação atingiu 11%, menor proporção desde 2004 quando foram feitas as primeiras certificações de terras quilombolas. A maior taxa de resolutividade foi registrada em 2006, com 85% de certidões emitidas sobre o total de processos em andamento. Depois da certificação emitida pela FCP, os quilombolas precisam que seja elaborado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), contudo, desde 2019, apenas 12 editais para a realização do processo foram publicados pela autarquia.
A fase final do reconhecimento da posse é a titulação, que também é de responsabilidade do Incra e, igualmente, registrou o menor índice em 17 anos. Em 2020, apenas um território recebeu a titulação: o Quilombo Rio dos Macacos (BA), processo que durou mais de 40 anos em disputas com a Marinha do Brasil. Outro território que passa por situação semelhante é o quilombo de Alcântara, no Maranhão, que abriga cerca de 3.350 famílias, de acordo com o processo de pedido de reconhecimento enviado ao Incra. “Quando a violação vem do próprio estado, isso faz com que as coisas sejam mais lentas. Mas, também, tem conflitos em áreas com fazendeiros, com áreas de agronegócio. No caso de Alcântara, por exemplo, o próprio governo entrou contra a gente para retirar esses quilombolas de lá, uma violação de direito”, observa Penha.
Racismo estrutural e institucional
A coordenadora da Conaq atribui a atual situação ao racismo estrutural e institucional e, para ela, o governo federal está cumprindo o que já havia anunciado durante a campanha eleitoral. Em 2017, durante palestra no Clube Hebraica, o então candidato Jair Bolsonaro, afirmou que havia realizado uma visita a um quilombo em Eldorado Paulista (SP): “Se eu chegar lá, não vai ter dinheiro para ONG. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, disse na ocasião, quando também afirmou, “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada”. Ao assumir o governo, em fevereiro de 2020, Bolsonaro publicou o decreto 10.252 que transferiu o Incra da Casa Civil para o Ministério da Agricultura, o que para as instituições que defendem a reforma agrária representa um evidente choque de interesses entre as pastas.
Para Penha, esses discursos, além de evidenciarem que a intenção de deixar de efetivar as regularizações das terras quilombolas sempre foi intencional, também tem incentivado as invasões dos territórios. “Aqui no meu território Sapê do Norte os conflitos têm aumentado, principalmente com essa pandemia, pessoas de fora ocupando o território fazendo a grilagem de terra, pessoas ligadas às comunidades evangélicas, que defendem o fascismo do Bolsonaro, que acham que as comunidades quilombolas não têm o direito à terra”, conta.
Apesar do discurso de que territórios quilombolas são terras improdutivas, dados do próprio Incra, revelam o contrário, em uma publicação de perguntas e respostas o instituto explicita: “a área trabalhada pelo INCRA em favor das comunidades quilombolas não chega a 0,12% da extensão territorial do país. É difícil imaginar que tão pequena porção do território nacional destinado a um único segmento seja capaz de atrapalhar o desenvolvimento de qualquer país”.
Dados do Censo Agropecuário de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) também confirmam a importância dos estabelecimentos de agricultura familiar para o que é consumido na mesa do brasileiro, sendo essas propriedades as responsáveis por 42% da produção do feijão consumido nacionalmente, por exemplo. A coordenadora da Conaq destaca, da mesma forma, essa contribuição das produções agrícolas quilombolas: “Nós estamos na parcela dos 70% que produzem alimento nesse Brasil, e nós estamos na parcela que tem menos terra e, estamos mais impactados em relação a esse desenvolvimento. As comunidades quilombolas são muito importantes não só na questão cultural, mas toda uma história que deve preservar”, finaliza Penha.
O Incra e a Fundação Palmares foram procurados para falarem sobre os dados de titulação e certificação de terras quilombolas, mas até o fechamento desta matéria não houve posicionamento das instituições.