Mulheres negras, mulheres com baixa escolaridade e mulheres das regiões Norte e Nordeste do país têm maior incidência de câncer do colo do útero. É o que revela uma pesquisa inédita da Fundação do Câncer. O levantamento visa alertar sobre a incidência de casos da doença.
De acordo com a pesquisa, o câncer do colo do útero em sua forma mais grave acomete 49 a cada 100 mil mulheres brasileiras. A região Norte tem a maior taxa do país, com 79 a cada 100 mil mulheres sendo diagnosticadas. Já a região Sudeste registra a menor incidência sendo 36 a cada 100 mil mulheres.
Em todas as regiões do país, exceto a região sul, as mulheres pretas e pardas representaram a maior taxa de incidência da doença tanto para neoplasia in situ – quando o tumor não ultrapassou a membrana basal, estando presente apenas no local inicial – 62,7%, quanto para casos mais graves, 64,3%.
As regiões Norte e Nordeste lideram o índice considerando a incidência de casos em mulheres negras. Somando pretas e pardas, a região Norte apresenta uma taxa de 88,9% dos casos e a região Nordeste atinge 92,2%.
Dos casos analisados, 61,6% eram de mulheres com baixa escolaridade (nenhuma ou ensino fundamental incompleto). Na região Nordeste, esse número chega a 69,2%, seguida das regiões Norte 64,3%, Centro-Oeste 62%, Sudeste 57,1% e Sul com 51,6%.
Racismo estrutural afeta a saúde da população negra
O racismo estrutural, em sua faceta institucional, é responsável por manter a população negra brasileira cada vez mais distante dos processos que resultam em maior longevidade e qualidade de vida. Um exemplo disso é o acesso à saúde.
A pesquisa revelou uma vulnerabilidade maior entre mulheres negras e mulheres das regiões Norte e Nordeste. Segundo o estudo, esse grupo tem maior dificuldade no acesso aos serviços de saúde, o que resulta em diagnósticos tardios com a doença já em estado avançado. O levantamento usa dados populacionais e registros de mais de 300 hospitais do país entre os anos de 2005 e 2019.
Para a médica da família, Dra. Tathiane Silva, o cenário da pesquisa resulta da herança escravagista do Brasil que, ao longo dos anos, perpetuou privilégios da população branca em detrimento da negra.
“Nossa sociedade utilizou do processo de escravização dos seres humanos oriundos de África permitindo que alguns privilégios fossem dados a pessoas brancas de origem europeia, assim foram se estruturando essas diferenças e até os dias de hoje elas são vistas. De que forma? Com o baixo nível socioeducacional, com um baixo nível socioeconômico, baixo acesso a bens, a habitação e saneamento básico”, explica.
Segundo a médica, o estudo evidencia as discrepâncias étnico-raciais e socioeconômicas que levam as mulheres negras ao diagnóstico tardio. “As mulheres negras são a base da nossa sociedade. São as que mais trabalham em serviços de subalternidade e as que menos recebem por esses serviços prestados. Isso contribui para que tenham baixo acesso ao nível educacional e dificulta o seu entendimento e acesso ao tratamento e prevenção de doenças”, afirma.
De acordo com Tathiane Silva, mulheres negras são as que trabalham mais horas e têm menos tempo para cuidar da sua saúde. Assim como são as mais afetadas por problemas de saúde e são maioria na mortalidade de várias doenças, entre elas o câncer de colo uterino.
Mortalidade: mulheres negras são as que mais morrem com câncer de colo do útero
Awo Yaa lembra que, há 7 anos, recebeu em seu consultório uma paciente negra, de 60 anos, que apresentava um sangramento uterino de coloração escura e com cheiro forte – sintomas da doença em estágio avançado – e não realizava o exame preventivo há mais de 20 anos.
“Era um câncer invasivo, que começou com uma lesão de colo do útero, mas se infiltrou e já estava com metástase em outros locais. Em menos de seis meses a paciente veio a óbito porque não tinha mais como fazer cirurgia. Ela realizou apenas um tratamento paliativo para dar um conforto e reduzir os sintomas”, conta a médica.
Apesar disso, a médica salienta que casos como esses podem ser evitados já que essa é uma doença causada por um vírus que pode ser detido tanto através de medidas de prevenção primária, como a vacinação contra o HPV, como por medidas de prevenção secundária, com exames de rastreamento. “É o caso do Papanicolau que pode detectar de forma precoce essas alterações para que o tratamento seja realizado da forma mais rápida possível e evite a progressão desse câncer”, conclui.
Outros estudos têm associado com frequência a desigualdade social e a cor da pele como fatores de risco para mortes por câncer no país. Segundo a pesquisa “Acessibilidade da População Negra ao Cuidado Oncológico no Brasil: Revisão Integrativa”, essas desigualdades refletem na acessibilidade de pessoas negras aos cuidados oncológicos e na detecção precoce independente do tipo de câncer e das formas de diagnóstico e tratamento.
No caso do câncer do colo do útero, um estudo do Observatório do Nordeste para Análises Demográficas, apontou as disparidades raciais na realização do exame de prevenção à doença e na mortalidade.
De acordo com o estudo, mulheres negras apresentam a maior taxa entre as que nunca realizaram o exame preventivo em relação às mulheres brancas. Independente do nível de escolaridade ou faixa etária. Além disso, o artigo alerta para o aumento da mortalidade de mulheres negras pela doença entre 2019 e 2020, enquanto houve redução de óbitos para mulheres brancas no mesmo período.
Da mesma forma, os dados da pesquisa “Distribuição de óbitos por câncer de colo do útero no Brasil”, publicada em 2021, reforçam essa disparidade. Segundo o estudo, o país apresenta uma tendência crescente de número de óbitos. A prevalência de mortes é maior entre mulheres negras (53,66%) de 40 a 59 anos. O estudo utilizou informações sobre a mortalidade de mulheres pela doença de 2010 a 2019.