Após pressão, Bolsonaro revoga decreto que possibilitava privatização do SUS

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Brazilian president-elect Jair Bolsonaro gestures as he delivers a joint press conference with Brazilian President Michel Temer (out of frame) after a meeting in Brasilia on November 7, 2018. (Photo by EVARISTO SA / AFP)

Apesar do Governo recuar, especialistas questionam a ação

Mais uma medida é revogada após pressão popular. Foto: EVARISTO SA / AFP

O decreto 10.530, assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, na última segunda-feira (26) foi revogado nesta quarta-feira (28). Bolsonaro usou uma rede social para dizer que o decreto não sinalizava a “privatização do SUS”, como foi interpretado por juristas, políticos, profissionais de saúde e membros da sociedade civil. Essa não é a primeira vez que o Governo de Bolsonaro retrocede após pressão popular e nem que diz que houve um “entendimento incorreto” de suas ações.

Thiago Campos, advogado e especialista em Gestão de Saúde Pública, explicou o decreto e evidenciou que a ação trata-se de um começo para a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS).

“O decreto impactava na qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimento (PPI) da Presidência da República. Trata-se, escancaradamente de uma privatização do Sistema Único de Saúde. A preocupação efetiva é porque a atenção básica é ordenadora do cuidado e como ordenadora do cuidado exerce o papel de regulação do sistema. A atividade de regulação exercida pelo poder público não é delegável. Não poderia ser delegada a um terceiro. É a primeira vez que a gente vê o movimento efetivo de fazer isso”, aponta o advogado.

O SUS é um pacto social construído para assegurar o direito constitucional de acesso à Saúde. Outra questão que o decreto traz é o tratamento da Saúde como um comércio por parte da atual gestão de Bolsonaro. O advogado Thiago Campos avalia, de forma preocupada, o Estado pensar nesse processo de parceria para a Saúde.

“Talvez o mais preocupante seja que essas entidades firmariam termos de parceria para fins de operar aquele equipamento, prestando por ela, ou por trabalhadores vinculados a essa entidade privada, serviços à população. A Parceria Público Privada [PPP] é uma concessão patrocinada, é preciso ter uma receita, se o Sistema Único de Saúde é constitucionalmente definido como um sistema gratuito, quem vai pagar essa conta a esse investidor privado, que vai fazer esse investimento, que vai modernizar e operar essas unidades básicas de saúde? Esse modelo, para mim, tem claramente uma inconstitucionalidade. Tem evidentemente uma ilegalidade. Fere as próprias diretrizes organizativas do Sistema Único de Saúde. Lembrando que as PPPs são concessões e como tal precisam ter retorno financeiro para aquele que vai investir. Elas são instrumentos de viabilizar investimentos privados quando o Estado não possui recursos para fazer. Esses recursos ela vai tirar ao longo do período que tiver a concessão, mediante recebimento de uma receita pública ou de cobrança para a população privada”, aponta o advogado, Thiago Campos.

Mais de 150 milhões de pessoas dependem exclusivamente dos serviços públicos para tratamento, ou seja, a cada 10 brasileiros, 7 dependem do SUS. O levantamento consta na Pesquisa Nacional de Saúde, divulgada hoje pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com dados referentes ao ano de 2019. O especialista Thiago Campos ainda alerta sobre o impacto que essa mobilização poderia causar caso seguisse.

“Sempre advogamos a tese de que enquanto ordenadora do cuidado ser ela que estabelece e que consegue avaliar as necessidades de saúde da população, que está distinta àquele território, conhece as necessidades de saúde daquele conjunto pessoas que moram naquele território. Ela exerce um papel importantíssimo dentro do sistema, orientando de que modo deve se organizar os demais pontos de atenção, de que modo a rede de atenção dever ser estruturada para atender aquelas necessidades. Assim como a Vigilância Sanitária, assim como determinadas atividades que tem o exercício do poder de polícia, elas não são delegáveis à iniciativa privada”, completa Thiago Campos.

A implantação de um decreto, com apenas dois artigos, aprovado Bolsonaro e Guedes viabilizaria estudos para a privatização do Sistema Único de Saúde (SUS).

Confira o decreto publicado:

Presidente da República, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, caput, incisos IV e VI, alínea “a”, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 4º da Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, e na Resolução nº 95, de 19 de novembro de 2019, do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República,
Decreta:
Art. 1º Fica qualificada, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República – PPI, a política de fomento ao setor de atenção primária à saúde, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Parágrafo único. Os estudos de que trata o caput terão a finalidade inicial de estruturação de projetos pilotos, cuja seleção será estabelecida em ato da Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia.
Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 26 de outubro de 2020; 199º da Independência e 132º da República.
JAIR MESSIAS BOLSONARO
Paulo Guedes

Apesar de tudo, Bolsonaro no Twitter fez uma postagem confirmando a revogação do decreto e mantendo o discurso de quem “sinalizavam para a privatização do SUS”, mesmo que o decreto avalie a parceria entre o setor público e privado.

Negros são maioria entre os usuários do SUS

Pesquisa aponta que 69% dos 17,3 milhões de usuários adultos que procuraram algum serviço da Atenção Primária à Saúde (APS) do SUS, são mulheres. Destas, 60,9% são negras, conforme revela o segundo volume da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), publicado neste mês pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

De forma geral, aproximadamente 80% dos negros (soma de pretos e pardos) utilizam o SUS no Brasil e justamente essa também foi a população que ficou mais vulnerável à doença, segundo levantamento Epicovid-19, coordenado pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em parceria com o Ministério da Saúde.

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