Um advogado foi impedido de fazer a sustentação oral da defesa de um cliente no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Isso porque, segundo o tribunal, Gustavo Coutinho, que está no processo de iniciação ao candomblé e por isso usava um terno branco junto com elementos partes da tradição religiosa, precisava vestir um “traje formal, em atenção à regra regimental”.
Com a decisão da 7ª Turma Cível da 2ª Câmara de impedi-lo de falar na corte, Gustavo falou sobre o caso. “Me senti violentado, desrespeitado e impedido de exercer a minha profissão. (…) [O desembargador] falou que aquilo não se tratava de um preconceito racial ou religioso, mas que era uma questão de respeito à corte. Ele chegou a falar que se eu tivesse trazido uma beca mais composta, que ‘eles não perceberiam’. Acho que ele se referiu às minhas guias, certamente“, disse.
Segundo o advogado João Paulo Aguiar, pós-graduando em Direito do Trabalho, o pode ser caracterizado como intolerância religiosa uma vez que em um país laico, pessoas de outras religiões não são impedidas de atuar nos tribunais, mesmo com seus elementos religiosos.
“Assim como os judeus fazem uso do Kipá, as freiras advogadas também não abrem mão de suas vestimentas tradicionais. O advogado, no exercício de sua profissão, não poderia ter seus direitos fundamentais violados, especialmente, em uma unidade do poder judiciário, pois sua vestimenta não violava os preceitos de austeridade e de decoro exigidos pelo Poder Judiciário“, disse João Paulo.
A advogada Thamara Deola, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, também caracteriza o caso como de intolerância religiosa já que Gustavo usava terno, como é exigido. Para Thamara, a regra de vestimenta de um tribunal é importante mas “não deveria ser usada como forma de limitar acesso e direitos“.
A advogada já viu um caso parecido antes. “Um colaboradora, quando foi se apresentar a nova equipe, foi tratada como mãe de menor infrator por ser uma mulher negra de calça jeans no sistema de justila, sendo um caso evidente de racismo estrutural“, contou.
O advogado João Paulo lembrou de uma situação de 2018 não relacionada especificamente a vestimenta, mas a questão racial.
“Eu estava no Fórum de Duque de Caxias quando a Dra. Valéria dos Santos, que também é negra, saiu da sala algemada, após exigir a magistrada que presidia a audiência de instrução no Juizado Especial Cível que faria sua manifestação em relação as alegações do réu. A juíza não permitiu e ambas entraram numa discussão acalorada. Mas é óbvio que se advogada não fosse negra, jamais sairia algemada”, contou.
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O caso de Gustavo Coutinho, de 30 anos, ocorreu na última quarta-feira (28). Ao ser impedido de fazer a defesa, uma outra advogada atuou em seu lugar, mesmo depois que ele se cobriu com uma beca preta, como é tradição no tribunal.
Como, segundo os ritos da religião Gustavo terá de usar branco, seu eketé e seu mokan por três meses, o advogado afirmou ao UOL que optou por colocar uma parceira para fazer a defesa em seu lugar, mas que ainda sim acredita que seu cliente tenha sido prejudicado. “De certa forma, ele já foi prejudicado porque eu acompanho o caso do cliente desde o início”, explica.
Ao UOL, o juiz desembargador Fabrício Fontoura Bezerra afirmou que ouviu a explicação sobre a questão religiosa, mas como o advogado não entrou no tribunal com terno e gravata, a decisão de solicitar o uso de outra vestimenta foi unânime.
“Foi assegurado ao ilustre advogado a oportunidade de apresentar naquela oportunidade um áudio a ser ouvido em sessão pelos desembargadores votantes; ou mesmo o seu adiamento do julgamento para depois do período em que deve usar as vestimentas próprias da religião escolhida. Porém, considerando que ainda deverá usá-la por três meses, declinou a sugestão e repassou o exercício da palavra“. disse ele.
O TJDFT foi procurado, e informou que não comentará o caso.
Código de vestimenta dos tribunais
Segundo o regimento do TJDF, os advogados devem usar trajes compatíveis com a dignidade da profissão, com respeito à corte e compatíveis com a liturgia, sem mencionar quais cores podem ou nçao ser usadas, mesmo que haja uma padronização por tons escuros. Também não há nenhuma proibição relativa ao uso de símbolos religiosos.
O advogado João Paulo afirma que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) definiu que os tribunais locais tem competência para fazer a regulamentação dos trajes a serem utilizados em suas dependências. “Para o TST (Tribunal Superior do Trabalho), somente pessoas que se apresentarem com “decoro e asseio” terão acesso ao Tribunal. Já para o TJRJ, a vestimenta no exercício das funções deve ser adequada e compatível com o decoro, o respeito e a imagem do Poder Judiciário“, diz o advogado.
Segundo ele, apesar de apresentarem algumas pequenas diferenças, as regras em todo país dizem de forma geral que as vestimentas não devem “violar os preceitos de austeridade e de decoro exigidos pelo Poder Judiciário“.
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O advogado ainda diz que de acordo com o princípio basilar do Estado Democrático de Direito, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF/88, artigo 5º, inciso II), e ressalta a importância de verificar outras questões.
“O segundo passo é verificar que “normas” consuetudinárias (dentre as quais estar o advogado trajado de terno e de gravata em audiências) não são validamente aceitas em nosso ordenamento jurídico, na medida em que o Brasil adota a norma escrita como única válida e de obrigatória observância por toda a coletividade, indistintamente (princípio constitucional da isonomia, artigo 5º, “caput” da CF/88)“, diz o advogado, que afirma que as regras da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não pode se sobrepor a Constituição de 1988.
“Não há na Constituição, em algum Código, ou em alguma Lei que obrigue o advogado a fazer audiências trajando terno e de gravata! O trabalho do advogado é de cunho intelectual, importando na verdade sua essência e não sua forma. Considero que tal exigência no que tange a vestimenta é inconstitucional“, diz o advogado.