Valéria Lúcia dos Santos, 48 anos, advogada. Mas desde o dia 10 de setembro, ela passou a ser conhecida como a advogada negra algemada. Foi a segunda vez que perdeu sua identidade. A primeira foi durante uma audiência, no 3º Juizado Especial Cível de Duque de Caxias, naquele mesmo dia, após ser algemada por policiais militares sob a ordem de uma juíza leiga e ser filmada sentada no chão.
Duas semanas depois, a Comissão Judiciária de Articulação dos Juizados Especiais do Tribunal de Justiça do Rio (Cojes) isentou de culpa a juíza leiga e os policiais militares que algemaram Valéria. Agora, ela aguarda decisão do Conselho Nacional de Justiça, a quem a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) apresentou reclamação.
Apesar de toda a humilhação sofrida, a advogada obteve outras conquistas. O maior sonho, de ter o próprio escritório, foi realizado no último dia 6 de dezembro. Além disso, ela tem sido chamada para palestras e chegou a ser homenageada no Troféu Raça Negra 2018, com a estatueta Zumbi dos Palmares.
“Tenho só menos de dois anos advogando. Ali (3º Juizado Especial Cível de Duque de Caxias), acho que me afirmei como advogada. Estava fazendo a coisa certa”, ressalta Valéria, que concluiu o curso em 2016, mas passou para a prova da OAB um ano antes.
Logo após o episódio, a advogada passou a ser convidada para entrevistas, eventos e palestras. Ela saiu do escritório onde trabalhava, mas conseguiu montar o seu espaço menos de três meses depois: “Fiquei conhecida, as pessoas começaram a me procurar. Vi que era o momento de ter meu escritório, que não é nada luxuoso, mas é meu”, conta Valéria, cujo escritório fica em frente ao Fórum de Duque de Caxias.
Se da Justiça ela ainda não teve uma resposta satisfatória, o mesmo não aconteceu em relação à sociedade civil. No Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, a advogada foi homenageada na Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, durante o Troféu Raça Negra 2018. O melhor de tudo foi a surpresa: “Recebi um convite para ficar uma semana em São Paulo para uma pós. Lá é o berço do Direito. O reitor José Vicente soube que eu estava na cidade e pediu para eu ir até a universidade. O auditório estava cheio. Foi uma emoção entrar e me deparar com aquela multidão. Fiz o símbolo da resistência e aquilo me emocionou muito. O que aconteceu comigo não foi só contra mim. Foi contra tudo que nós, negros, sofremos todos os dias”.
Valéria aguarda um posicionamento do CNJ, mas já cogita recorrer à Organização das Nações Unidas, caso haja outra resposta negativa: “O Judiciário é corporativista. Poderia dar uma decisão não para me favorecer, mas à altura do que a sociedade esperava. Nunca um advogado saiu algemado de uma audiência no Brasil. O Judiciário, como órgão público, deveria fazer justiça. Se precisar, vou aos órgãos internacionais”.
Ainda indignada com tudo que aconteceu, Valéria faz uma avaliação da situação do negro no Brasil e afirma que viveu uma situação de desumanidade: “O que fizeram comigo é desumano. Estava trabalhando. Se fosse um advogado de terno ou uma advogada loira de salto, não seriam algemados. O negro não é respeitado. Quando tentamos exigir um direito nosso na sociedade brasileira, tentam nos prender, nos agredir fisicamente ou, em último caso, nos matar. E isso não é mimimi”.
Valéria jogou basquete no Brasil dos 11 aos 24 anos, quando recebeu um convite para jogar nos Estados Unidos. De volta ao país 11 anos depois, ela trabalhou como técnica de Enfermagem a domicílio e em hospitais da região. Foi quando, desiludida com a área da Saúde, decidiu prestar vestibular para Direito em 2010: “Não sabia se estudava para concurso na área de Saúde ou se fazia outra faculdade. Percebi que era muito questionadora e decidi fazer Direito. Foi a melhor coisa que fiz na vida”.