“Sessenta e nove, frango assado, de ladinho a gente gosta…”. No ano 2000 ( há quase duas décadas atrás)”, Tati Quebra Barraco se consagraria como a MC responsável por propagar o debate da autoestima e empoderamento no mundo do funk de um grupo de mulheres invisibilizado pela sociedade: negras, faveladas e fora dos padrões eurocêntricos e midiáticos. Uma mulher também negra, moradora da Cidade de Deus e obesa se apresenta ao microfone proferindo seus desejos sexuais repudiados pela branquitude moralista. A mesma denomina-se como “feia” através do bordão que virou sua marca “ Sou feia mas tô na moda” transformando-se também posteriormente num documentário. Tati mal sabia que sua bandeira seria a ponta de lança para a transgressão feminina no universo do funk, potencializando o debate de igualdade de gênero e libertação sexual das mulheres.
Em 2019, a atriz, dançarina e pesquisadora Taisa Machado ( 30 anos) vem se destacando como personagem principal deste debate no Rio de Janeiro, ao propagar a auto estima de muitas mulheres que não se reconheciam sensuais ou que sequer acreditavam no exercício de rebolar o bumbum como expressão de libertação sexual. Às sextas feiras às 20 horas na Lapa acontece a badalada oficina “ Afrofunk” na sede do grupo de teatro “ Tá na Rua”. Mulheres com diferentes corpos , ostentando shorts, tops, sutiãs e calças legging estilosas se enfileiram numa sala com o mesmo propósito: construir a autonomia social e sexual dos seus corpos. Às 19h45, subi as escadas do casarão e percebi muitas mulheres negras, uma minoria de mulheres brancas e uma mulher transexual sentadas na escada em frente a janela. Todas me cumprimentam com um leve sorriso como já se identificassem no mesmo propósito daquele “saber” coletivo a ser aprendido. Faltando 5 minutos para a aula começar surge Taisa,( “a Chefona” para muitos) sorridente, cumprimenta todas as alunas com um afetuoso abraço e procura por um short para se vestir para a aula.
Quem pensa que a oficina resume-se no ato de rebolar , engana-se redondamente de maneira literal. Taisa insere nas suas coreografias e movimentos, contextualizações históricas através de seus estudos referentes às danças de culturas africanas , tendo como inspiração kuduru angolano e dance hall jamaicano. Sua fala também emite contestação política em relação ao processo de marginalização do funk. A mesma ressalta em outros momentos, o aprofundamento das ações ultra conservadoras da gestão estadual do governo que proibiu diversos baile funk na cidade e prendeu o DJ Rennan da Penha. Oriunda do morro do Chapadão e funkeira desde nova, Taisa assume uma consciência ativista na produção do seu trabalho ao colocar o funk na centralidade da sua defesa enquanto mulher preta .Mas sem dúvida alguma, o ponto alto se configura no momento em que a dançarina desperta na oficina, um espaço de libertação para as mulheres ao pedir que as mesmas se soltem, impulsionando movimentos apoiadas ao chão que lhes propiciem prazer. Num “papo reto” entre manas, a mesma conclama a necessidade das mulheres se libertarem das amarras da estrutura do patriarcado que reproduz a subalternização da mulher, garantindo autonomia de seus corpos e prazer na sua sexualidade. Denomina de “ Funk Sutra”, movimentos com o corpo que projetam a área uterina da mulher, desenvolvendo sua libido nas atividades sexuais cotidianas.
Taisa recentemente foi sensação do evento FLUP ( Feira Literária das Periferias) ocorrido no MAR( Museu de Arte do Rio) no dia 15 de julho 2019, tendo como convidadas principais, as escritoras negras consagradas Grada Kilomba e Conceição Evaristo. Quebrando o protocolo da formalidade acadêmica de um evento deste porte, a mesma colocou as/os participantes para rebolar ao som do pancadão. Diante da visibilidade e produção cultural desta potente oficina que tem causado alvoroço na cena do Rio de Janeiro, conversamos um pouco com Taisa:
De onde surgiu a ideia de produzir uma oficina como o “ Afro Funk” e a partir de quais referências você a construiu?
Taisa Machado: Comecei a estudar dança afro quando estava fazendo teatro em 2011.Paralelo a estes estudos na dança afro, eu curtia muito baile funk. E eu ficava curiosa porque eu achava que tinha muito influência de uma dança com a outra mas não via isso ser discutido na cena da dança afro. Até que em 2014 eu fiquei sem emprego e eu tava super sem grana e decidi colocar essa pesquisa pra jogo, que não era muito voltada para o corpo feminino, era algo que tinha a ver com outras danças. Mas como eu não sou muito de passinho, fiz mais nesta pegada de rebolar.
Quais os retornos QUE você tem recebido de suas alunas após se inserirem na sua oficina e que situações destes relatos te marcaram?
TM: Bom, minha oficina hoje abriga mulheres da zona sul,zona norte e oeste, negras, brancas mulheres trans, universitárias, gordas, magras, mulheres com mais de cinquenta anos.. Por isso são relatos bem variados. Mas no geral, as mulheres dizem que se sentem mais poderosas de alguma maneira e para mim é sempre uma surpresa porque este espaço não foi construído com intuito de empoderamento, era simplesmente para dançar. Mas a própria dança é um espaço de poder , principalmente quando a gente pensa em dançar algo produzido por mulheres pretas, da favela e que muitas vezes o sexo e a sexualidade são uma das suas maiores prisões.Como a gente não tem direito a ser bonita, desejada e tudo isso tem a ver com sexo e sexualidade. Um relato que eu gosto é que estão transando melhor e a ideia é essa, fazer da dança uma tecnologia perfeita, transformar a sociedade e você como pessoa com movimentos de prazer.
Vivemos tempos muito conservadores na sociedade onde se retrocedeu os debates referentes a igualdade de gênero e liberdade de expressão. Você teme que as ações dos governos vigentes reprimam outras produções culturais com a natureza da sua oficina?
TM: Olha, eu não temo porque eu trabalho com o funk que sempre foi odiado pelo governo e a gente não está aqui para apertar a mão de ninguém. O meu território sempre foi insubmisso e sempre será. Eu não fecho com dinheiro do governo. Eu não fechava quando tinha empatia pelo governo, agora então…Claro que quando pinta alguma coisa a gente até entra mas foda-se o presidente!
Que recado você daria para as mulheres que tem desejo em libertar-se socialmente e sexualmente mas se veem reprimidas em seus espaços cotidianos ?
O recado que eu tenho para dar para mulheres que se encontram em uma situação de muita opressão da luta diária. A gente vê as nossas referências pessoais são referências de poder e libertação mas parece que o jogo está sempre ganho. Acho que a conquista do corpo, opiniões e auto amor principalmente quando você é preta . Todo dia você vai ter que conquistar algo a mais. É claro que quanto mais você está na batalha, mais experiente você se torna e fica mais difícil de vencer . Se ame e se respeitando, tratando você como trata as pessoas. Geralmente tratamos tão bem as pessoas e não tratamos bem a nós e nosso corpo. Não oferecemos momentos ao nosso corpo momento de fluxo e de descanso ou de prazer. O que busco oferecer no meu trabalho é um momento de fluxo de energia, racionalidade e movimentação. O recado é principalmente num momento tão careta como esse. Que sejamos mulheres insubmissas, seja com o nosso corpo ou assumindo o poder. Vamos quebrar regras!
Em suma, a oficina “ Afro Funk” potencializa a construção do protagonismo feminino na sociedade, desconstruindo estereótipos machistas e questionando papeis de gênero que condicionam mulheres a reprimir seus desejos sexuais ou autonomia corporal. O trabalho cultural de Taisa , em meio a uma conjuntura política pantanosa que reflete nas imposições dos costumes da sociedade, também nos instiga a pensar criticamente na condição desigual entre homens e mulheres, na auto afirmação da negritude e combate as estruturas racistas no campo da cultura.
Amei essa entrevista! Será que vcs poderiam me passar o e-mail da Taisa? Pesquiso dança e gostaria de conversar com ela sobre as suas aulas, porque gostaria de fazer algo parecido aqui em São Paulo. Ou podem passar meu email para ela!