“Nunca serei herói. Minha pele me condena. Sou muitos e não sou ninguém. Sou Zumbi, Marielle, João Cândido, sou Flidam”, dizia o trecho do poema do Poetinha de Meriti, declamado durante a viagem no Trem do Flidam, na manhã deste sábado(24). No primeiro vagão do veículo, estavam escritores, lideranças de movimentos sociais, religiosos de matrizes africanas, organizadores e pessoas comuns que foram prestigiar a sexta edição do Festival Literário Internacional da Diáspora Africana de São João de Meriti (Flidam), que termina neste domingo (25), na Baixada Fluminense.
Um dos pontos altos do Flidam é o trem que parte da Central do Brasil e deixa os participantes na estação Pavuna/São João de Meriti. De lá, após alguns ritos religiosos — como a oferenda a Exu — seguem dançando afoxé até a Paróquia de São João Batista, conhecida como Igreja da Matriz, no Centro do município. Lá é feita a tradicional lavagem da escadaria pelas baianas.
Curador do festival, Rodney Albuquerque, conta que a proposta do trem é, desde a primeira edição, reverter a lógica de que não há cultura na Baixada Fluminense: “É a perspectiva turística no sentido reverso. Há também o protagonismo popular, porque marchar, caminhar, isso é a ocupação de um espaço público, mostrar que estamos aqui. É empoderamento, força e raça. É algo muito forte”.
Durante a viagem do trem, a música ficou por conta da Velha Guarda Show do Império Serrano, que entoou sambas tradicionais da escola e de outras agremiações. O presidente da Academia de Letras e Artes de São João de Meriti, Ney Santos, também declamou sua poesia. Ele é o poeta oficial do Trem do Flidam, desde a primeira edição do festival: “Isso é a valorização do povo negro. O Flidam vem para fortalecer nossas raízes e engrandecer a Baixada Fluminense”, destacou o escritor.
O festival reúne escritores e promove diferentes atividades culturais, como dança, artes plásticas, teatro, artesanato, rodas de conversa e música. Nos estandes, a presença da literatura negra se destaca.
Representantes de diferentes religiões prestigiaram o evento neste sábado, durante a lavagem da escadaria da igreja, ao som do Afoxé Raízes Africanas. Religiosos da Igreja Metodista e até representantes da comunidade cigana seguiram no cortejo.
Para Iyá Lúcia d’Oxum, coordenadora do Grupo de Mulheres Yepondá, a caminhada e a lavagem é um símbolo de luta contra a intolerância religiosa: “130 anos depois, ainda temos que estar na rua para dar um basta à intolerância religiosa. E esse é um momento importante onde estamos juntos com sacerdotes de outras religiões. Infelizmente, ainda estão quebrando nossos templos e matando nossos sacerdotes. Então estamos fazendo uma caminhada de paz, amor e esperança”.
O tema da sexta edição do festival é “Abolição? 130 anos depois’’, que questiona o que é ser negro atualmente no Brasil. A escritora Conceição Evaristo — vencedora do Prêmio Jabuti 2015 e que concorreu a uma vaga na Academia Brasileira de Letras este ano — é a grande homenageada e esteve presente numa palestra, neste sábado (24).
Durante o ato da lavagem da escadaria da igreja, a vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes — brutalmente assassinados em março deste ano — foram homenageados. Outros negros vítimas da violência no estado foram lembrados.
Para o organizador do Flidam e superintendente de Promoção de Políticas de Igualdade Racial de São João de Meriti, Frei Tatá — um dos principais expoentes da luta do negro na Baixada Fluminense — a lavagem da escadaria se consolida a cada ano como um evento tradicional da cidade: “Essa ato faz com que nossa Baixada seja um pouquinho das escadarias da Igreja Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador. Mas lembrando a importância das águas, do batismo, de Iemanjá, de Oxum. Enfim, das águas da paz, num tempo tão difícil”.
Fotos: Louise Freire