No segundo dia do Notícia Preta na Flip 2019 começou quente. Marcelo D’Salete junto com Marcela Cananéia trouxeram para debate questões urgentes a serem pensadas sobre a construção da identidade do negro assim como sobre a necessidade de lutar não só pelo território, mas também pela cultura e saberes ali existentes continuem da forma como se manifesta. A mesa Cumbe, nome do livro premiado de D’Salete, foi muito bem comandada por Adriana Couto, que abriu o evento recitando o samba-enredo desfilado pela Mangueira em 2019 e que teve a sensibilidade de permear os principais pontos que tocam os dois artistas.
Além dos já citados, outros pontos importantes tocados por ambos foi a urgência em celebrar nos livros os heróis de resistência, para dar fim à história de que o negro só teve papel de subalterno, e também a necessidade de pesar uma nova maneira de lecionar, já que para D’Salete, o método expositivo não é mais tão eficaz.
Logo depois, foi a vez da Nigeriana yòbámi Adébáyò participar da mesa chamada Angico, também na programação oficial. No trecho de Fique comigo lido pela autora durante a conversa, fica claro que a questão do feminismo está em debate no país também assim como a recorrente volta aos ancestrais. Sendo que o feminismo lá lida com a poligamia recentemente tornada proibida e também com a pressão pela maternidade.
“Agora, estou me recriando”
Nas casas paralelas, a tarde foi embalado pelo café de Dona Jacira. A mãe de Emicida, Fióti e mais duas meninas participou de uma roda de conversa na Casa Poética Negra e chamou a atenção pela sinceridade com a qual tratou questões sensíveis como períodos de tristeza, desconstrução e machismo. Ouvindo a fala dela e pensando na música Amarelo, que Emicida lançou com Majur e Pablo Vittar, é possível ver que essa família cresce e dialoga junto a todo momento.
Para quem não acompanhou, às vésperas do show no Rio de Janeiro, o rapper teve um artigo publicado no jornal O Globo reconhecendo que se não foi homofóbico por ação o foi por omissão. No encontro desta sexta-feira, Dona Jacira reconhece que o fato de suas filhas terem sido responsabilizadas pelos afazeres domésticos pode ter feito com que elas não tivessem muito tempo para pensar numa carreira profissional, o que não aconteceu com os meninos. Ambos são casos de reflexão e mudança de postura difíceis de ver por aí atualmente.
“Eu não preparei muito bem as minhas filhas, porque elas chegavam em casa e iam para os afazeres domésticos, o que não dava tanto tempo para elas pensarem na carreira. Mas eu consegui corrigir isso, uma hoje está cursando direito e a outra está na faculdade de artes”, diz Jacira, que celebra seu primeiro livro lançado cujo título é Café.
“Eu nasci e tive a minha inteligência cortada. Agora, estou me recriando”.
Pensamento crítico sobre a língua portuguesa
A noite foi encerrada com a fala potente de Grada Kilomba, que começou a mesa fazendo uma reflexão crítica sobre a língua portuguesa, tão celebrada em eventos como este.
“É preciso repensar a língua. Um dos trabalhos da colonização é romantizar a língua portuguesa. Só que quantas línguas foram erradicadas para que essa existisse. Esses foram alguns dos questionamentos que surgiram com a tradução do inglês para o português. Como a língua passa por poder e violência, não é só semântica. Quem pode representar a condição humana, quem fala e não fala. Como a língua determina identidades”.
Fazendo uma análise sobre o Brasil, país que ela vê fraturado atualmente, ela levantou uma questão sobre a arquitetura das construções que em nenhum momento apareceu na mesa que aconteceu na manhã de quinta-feira, e que contou com a participação de Adriana Calcanhoto e Nuno Grande, que falava justamente sobre este tema.
“Há aqui uma arquitetura onde você tem portas de frente e os dos fundos. Quem entra pela frente, são corpos brancos e atrás, os que não podem ser vistos. É um apartheid na arquitetura. Não é possível falar de democracia racial com essa separação”, disparou Grada.