Peças de religiões de matriz afro-brasileira, apreendidas entre 1889 e 1945, deixam a Polícia Civil para integrar o Museu da República

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 Elisângela Leite/Quiprocó Filmes 

O Museu da República recebeu no dia 21 de setembro um precioso acervo de religiões de matriz africana. Fruto de grande mobilização, o movimento “Liberte Nosso Sagrado” conseguiu importante vitória com a assinatura do termo de transferência do acervo da Polícia Civil ao Museu da República, no dia 7 de agosto deste ano.

As peças foram apreendidadas entre 1989 e 1945. Na época, o Código Penal Brasileiro legitimava a intolerância religiosa e por isso os objetos foram para o museu da polícia.

Foram quase três anos de negociações mediadas pelo Ministério Público Federal (MPF) para que, enfim, as mais de 200 peças deixassem o Museu da Polícia Civil, no Centro do Rio, onde, segundo o movimento, elas eram armazenadas de forma inapropriada.

As peças foram apreendidas em terreiros de candomblé e umbanda – a maioria durante a Primeira República e a Era Vargas – e guardadas na Repartição Central da Polícia, prédio que hoje é a sede da Polícia Civil.

Naquele tempo, o Código Penal de 1890 definia como crime a “prática do espiritismo, da magia e seus sortilégios”.

Breve histórico

O material que integra o acervo, e estava sob tutela da Secretaria de Estado de Polícia Civil – SEPOL, conta com objetos sagrados para as religiões de matriz africana, como Umbanda e Candomblé. Tais violações ocorreram nas primeiras décadas da República, particularmente nos anos 1920 e 1930, ainda que desde a Carta Constitucional de 1891 já se estabelecesse no país o Estado laico e a liberdade de crença e culto. 

Os objetos apreendidos a partir dessas invasões foram depositados no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, compondo, ao lado de outros materiais apreendidos por forças policiais, exposições organizadas na instituição. Em 1999, quando a sede desse Museu é transferida para o prédio histórico da Rua da Relação, nº 40, no centro carioca, todos os objetos da Coleção Museu de Magia Negra foram guardados em caixas e assim permanecem até o momento, com acesso vetado ou muito restrito de pesquisadores e da
comunidade de terreiro.

O acervo

Trata-se hoje de 523 peças. O seu primeiro conjunto reunia 126 peças que, em 1938, foram tombadas pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-SPHAN, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN, constituindo o primeiro tombamento etnográfico do país inscrito no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Neste ano de 2020, a transferência desses objetos para o Museu da República foi acordada entre a Secretaria de Estado da Polícia Civil, o Museu da Polícia do Rio de Janeiro, o Instituto Brasileiro de Museus e o Museu da República, com amplo apoio do povo do terreiro, de autoridades políticas, artistas e intelectuais engajados na campanha Liberte Nosso Sagrado, formalizada em 2017 para reivindicar a retirada desse acervo do Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

A transferência da Coleção ”Museu de Magia Negra” para o Museu da República é um passo preciso na direção de projetos que lancem luz sobre esse patrimônio cultural, garantindo, não somente a sua organização, preservação, comunicação e acesso, mas também justiça e reparação social, com afirmação do direito e do respeito à diversidade religiosa brasileira. E um dos primeiros passos rumo a mais avanços, nesse sentido, também vale destacar a reivindicação dos povos de terreiro para a troca do nome da coleção para Acervo Sagrado Afro-Brasileiro e assegurar medidas que visem garantir a cessão definitiva do acervo.


Transporte e recebimento


A verificação técnica do acervo foi conduzida por uma equipe do Iphan e do Departamento Regional de Museus, e entre os dias 16 e 18 foi feita a embalagem de todo o acervo, por empresa especializada. Na manhã de segunda-feira (21), o acervo chegou ao Museu da República e, em função do isolamento social, ocorreu uma cerimônia simbólica reservada às Yalorixás e Babalorixás representando toda a comunidade dos povos de santo.
O ato contou com a presença de lideranças religiosas da Umbanda e do Candomblé, com destaque para Mãe Meninazinha de Oxum – uma das pioneiras em todo o processo há mais de 30 anos. Além de técnicos do Museu da República, do Iphan, e representantes do Ministério Público Federal.  

A história do acervo virou filme

Em 2017 essa história foi contada a partir desses objetos sagrados e mostra como as comunidades tradicionais de terreiro eram criminalizadas, seus religiosos perseguidos e seus objetos sagrados apreendidos. O documentário Nosso Sagrado, (dirigido por Fernando Sousa, Gabriel Barbosa e Jorge Santana) produzido pela Quiprocó Filmes em parceria com a campanha Liberte Nosso Sagrado, impulsionada por diversas lideranças religiosas e organizações da sociedade civil, traz à tona o passado dessas comunidades. Além, também, da coleção que levava o nome de “Museu Magia Negra” e o processo para libertar os objetos sagrados que estavam há mais de 100 anos no antigo DOPs do Rio de Janeiro. O documentário foi licenciado para o Canal Futura e, atualmente, está disponível na plataforma kweli.tv.

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