Por Amazônia Real
“Infelizmente, esta foi uma tragédia anunciada. Nossas autoridades fizeram pouco caso. Nós tínhamos uma única opção. As embarcações que estão regularizadas não estão oferecendo boa qualidade também, estão danificadas, algumas até retornaram ao porto”, disse Tamires Leal horas antes de velar o corpo de sua mãe, Erzeli Maria Santos Leal, de 62 anos, na manhã de sábado (10), em Salvaterra, que fica na Ilha de Marajó, no norte do Pará. Erzeli é uma das 22 vítimas do naufrágio da lancha Dona Lourdes II, ocorrido na manhã do último dia 8, na ilha de Cotijuba, em Belém.
A embarcação estava superlotada, com mais de 80 passageiros – 65 sobreviveram. Mas há testemunhas que relatam mais de 130 pessoas na lancha. O número de desaparecidos é incerto. Segundo a Agência de Regulação e Controle de Serviços Públicos do Estado do Pará (Arcon) e a Marinha do Brasil, o barco Dona Lourdes II estava irregular para navegação, não tinha lista de passageiros e coletes salva-vidas para todos, situação comum no transporte fluvial na Amazônia.
De um porto clandestino da vila de Camará, em Cachoeira do Arari, cidade que fica também na Ilha do Marajó, a lancha Dona Lourdes II partiu para um percurso de 80 quilômetros até Belém, uma viagem de duas horas, e nunca chegou ao destino.
O comandante da embarcação, Marcos de Souza Oliveira, não foi localizado, segundo a Polícia Civil do Pará, que abriu inquérito para investigar crime de homicídio doloso, quando o agente assume o risco de matar pelas suas ações.
Segundo a Arcon, Oliveira era reincidente em irregularidades na navegação, tendo sido notificado por driblar a fiscalização de outra embarcação – a Clícia x Expresso -, por três vezes: nos meses de fevereiro, julho e agosto deste ano.
Dona Erzeli, quilombola da comunidade Bairro Alto, deixou, além de Tamiris, outros cinco filhos. Segundo a filha, a mãe viajava para visitar uma irmã com problemas de saúde na capital paraense. “A população precisa desse transporte, principalmente para [buscar atendimento] médico, era nossa única opção”, afirma Tamires.
A comoção abateu todo o arquipélago do Marajó, que tem uma população estimada em 550 mil pessoas. Entre os mortos no naufrágio da lancha Dona Lourdes II, 15 pessoas viviam na ilha, de acordo com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup).
Denúncias enviadas ao governo
O acidente já é classificado como o segundo mais grave desde o ano de 2020. Naquele ano, o barco Ana Caroline III naufragou entre os rios Amazonas e Jari, matando 40 pessoas, na divisa dos estados do Amapá e Pará.
Superlotação, falta de fiscalização do poder público e embarcações sem manutenção são alguns dos problemas históricos dos acidentes nos rios da região amazônica. Na mesma semana do naufrágio, uma pane na lancha da Banav fez com que passageiros fossem transferidos para um navio em movimento na Baía do Marajó. Na semana anterior ao naufrágio da lancha Dona Lourdes II, o motor de outra embarcação, Lívia Marília, da empresa Arapari, pegou fogo, obrigando os passageiros a desembarcarem às pressas.
Em 17 de maio deste ano, a Câmara Municipal de Salvaterra, uma das 16 cidades do Marajó, sediou audiência pública em que esteve em pauta uma petição endereçada ao governador Helder Barbalho, candidato à reeleição pelo MDB. O problema, denunciado desde 2019, especialmente quanto ao transporte oferecido pela empresa de navegação Arapari e Banav, foi exposto em uma petição pública.
Há três anos, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi assinado na Justiça com a administração do Porto Camará, em Salvaterra, para garantir a finalização das obras de reformas, melhorias e manutenção do porto. Na ocasião, as empresas Rodofluvial Banav, Arapari Navegação Ltda e Henvil Transporte firmaram o TAC com o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA). “Os compromissos não foram cumpridos. Um dos mais importantes deles seria a licitação, a cargo da Arcon, para novos serviços. Agora o Ministério Público chama a tragédia de ‘incidente’. Isso é um absurdo”, critica a jornalista e bacharel em direito Ettiene Angelim.
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Moradora de Salvaterra, Ettiene é autora da petição enviada ao governador Helder Barbalho em maio. Ela conta que representantes enviados pela autoridade máxima do Estado até a Câmara Municipal de Salvaterra ficaram à deriva no navio J. Cunha, da empresa Arapari, precisando de remoção. “À época, a Banav nem era tão ruim quanto a Arapari. Mas tudo foi piorando e os gestores públicos só nos diziam não poder fazer nada. Ora, ninguém entra num barco escroto por opção, porque quer”, afirma.
A população do Marajó critica a falta de sensibilidade do poder público em responder às reiteradas demandas por condições dignas de transporte dentro do próprio sistema que tem sua chancela. Houve protesto no porto da Arapari, no dia 9. Moradores de Salvaterra, Cachoeira do Arari e Soure se mantiveram no porto da Foz do Rio Camará e lá permaneceram até o início da tarde desta segunda-feira (12). Eles exigem compromisso do governador Helder com a prestação de novos serviços, como tem sido solicitado desde maio. Os manifestantes têm bloqueado o portão de balsas, dificultando a chegada de veículos de cargas na região do Marajó Oriental.
Segundo o governo de Helder Barbalho, que concedeu uma coletiva à imprensa no dia do acidente, serão tomadas “todas as medidas, estabelecidas de forma imediata, pelos órgãos estaduais e com apoio do município, para garantir apurações céleres e assistência às vítimas do acidente”.
O governador prestou solidariedade às famílias enlutadas. “Nos solidarizamos com todos os familiares das vítimas dessa tragédia ocorrida hoje e reforçamos que estamos acompanhando de perto todas as ações estabelecidas para minimizar os efeitos desse trágico acidente”.
A reportagem procurou a assessoria de imprensa de Helder Barbalho para ele falar sobre as denúncias da população da Ilha do Marajó, mas até a publicação desta reportagem não obtivemos respostas aos questionamentos.
A assessoria de imprensa do MPPA também foi procurada para falar do TAC de 2019, mas aguarda resposta da Promotoria de Salvaterra para dar um retorno à reportagem.
Drama dos quilombolas
Marlete Carla Santos Leal, de 43 anos, é uma das 65 sobreviventes do naufrágio da lancha. Ela conta que viajava da comunidade quilombola Bairro Alto com destino final a comunidade da Serrinha, no município de Oriximiná, onde participaria de um encontro de mulheres. Ela foi salva por um pescador. “Agradeço a Deus pela oportunidade de sobreviver e agradeço ao pescador. Foi um anjo que apareceu na minha vida. Peço a Deus que possa abençoar essa pessoa, onde quer que ele esteja. Não sei o nome dele”, disse.
Pescadores e moradores da comunidade Cotijuba salvaram muitos sobreviventes, segundo Marlete, que perdeu todos os pertences no acidente. “Eles nos acolheram com tudo o que podiam: roupa, celular, água e palavras de conforto. Feliz a gente não está, porque foram muitas pessoas que morreram, inclusive duas pessoas do meu quilombo. Quantas pessoas hoje não estão chorando e velando seus familiares? Quantas não conseguiram encontrar seus familiares? É uma dor muito difícil de ser curada”, lamenta.
Marlete, que é liderança de sua comunidade há sete meses, cobra das autoridades uma solução para a negligência no acidente. “Dói, porque a gente que ganha salário mínimo, a gente luta até pra comprar um celular. Imagina quanto de bagagem e materiais a gente perdeu? Governo, pelo amor de Deus, comece a fazer a sua parte. É um apelo que eu faço”.
De acordo com a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará – Malungu, morreu também no naufrágio Edineia Carneiro, da comunidade Pau Furado, em Salvaterra. A organização estima existirem 527 comunidades remanescentes de quilombo no Pará. A maioria depende do transporte fluvial na região amazônica. “Com profundo pesar, registramos nossa indignação em relação ao frágil sistema de fiscalização nos portos e rios paraenses, que culminou no naufrágio”, repudiou em nota oficial a coordenação.
A cidade de Salvaterra está circunscrita à porção oriental da ilha, junto com Cachoeira do Arari e Soure, cidade que prestou homenagens à Dona Cesarina, outra vítima do naufrágio. Em suas redes sociais, o tradicional grupo Tambores do Pacoval compartilhou uma mensagem de carinho da Associação de Moradores do Pacoval, nome do bairro que contou com mobilização ativa de Dona Cesarina por melhorias de vida para a comunidade e pela constituição da entidade, há 18 anos. “Externamos nosso profundo pesar e nos solidarizamos com a família dessa mulher tão singular, por sua alegria de viver a dançar os inúmeros ritmos da vida”, encerra a mensagem assinada por Ailton Favacho.
Operação de buscas
A Marinha do Brasil, por meio da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental (CPAOR), é o órgão responsável pela fiscalização da navegação nos rios da Amazônia. Em uma nota divulgada à imprensa, a Marinha diz que instaurou um inquérito para apurar o acidente “dentro das suas atribuições e convocará os responsáveis pela empresa para apuração e esclarecimentos”.
Sobre as buscas e resgate das pessoas desaparecidas no naufrágio da lancha Dona Lourdes II, a Segup disse que nove embarcações dos órgãos de segurança do estado e um helicóptero, juntamente com duas embarcações e uma aeronave da Marinha do Brasil continuam com as ações no local do acidente, na Ilha de Cotijuba, em Belém.
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