A celeridade no esclarecimento dos homicídios é fundamental para processos técnicos da investigação
Marcelo da Silva só foi identificado como o assassino de Beatriz Angélica Mota após 7 anos do crime. A família de Angélica precisou viver por todo esse tempo com a dor do luto, presenciou falhas técnicas da investigação e encontrou forças para se mobilizar e cobrar respostas sobre quem retirou a vida da criança de 7 anos.
A celeridade no esclarecimento dos homicídios é fundamental para processos técnicos da investigação, mas também porque a morosidade do Estado reduz a utilidade pública da resposta, sendo parte essencial da sensação de impunidade para milhares de famílias brasileiras. O Brasil tem falhado em cumprir seu papel de dar respostas rápidas para esses crimes, pois apenas 36% dos homicídios ocorridos em 2023 no país foram esclarecidos até o final de 2024, revela a mais recente edição da pesquisa Onde Mora a Impunidade, do Instituto Sou da Paz.

O esclarecimento do homicídio de Beatriz não entrou no indicador do Sou da Paz porque ele não aconteceu dentro do tempo estipulado pela metodologia. “A questão do tempo é fundamental, porque elucidar os crimes de homicídio significa abrir caminho para a responsabilização de quem ataca o bem mais valioso reconhecido pelo nosso ordenamento jurídico: a vida. O atraso nesse processo mantém homicidas impunes, deixa as famílias sem resposta e reduz a confiança da sociedade no Estado”, diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
Para calcular o indicador, o Sou da Paz solicitou aos Ministérios Públicos e aos Tribunais de Justiça de todos os estados, via Lei de Acesso à Informação, dados sobre as ocorrências de homicídio doloso que geraram denúncias criminais e dados do perfil das vítimas.
Beatriz foi assassinada em 2015, primeiro ano da série histórica. Desde então, a porcentagem de elucidação manteve-se ao redor de 35%, tendo o seu pico em 2018, com 44% de elucidação. “A série histórica do indicador expressa a baixa prioridade que as instituições de Estado dão ao esclarecimento de homicídios. É urgente que o Ministério da Justiça e Segurança Pública crie um indicador oficial e utilize essa métrica para identificar boas práticas, locais com maiores dificuldades e para induzir políticas públicas nas esferas federal e estadual, focadas na melhoria da investigação policial”, diz Carolina.
Essa baixa eficiência do Estado em dar respostas aos assassinatos se reflete no sistema carcerário brasileiro: apenas 13% dos 670.792 detentos estão presos por homicídios, segundo dados do SISDEPEN. A grande maioria das prisões ocorrem por crimes contra o patrimônio (40%) e crimes relacionados a drogas (31%), crimes mais propensos às prisões em flagrante, refletindo a histórica priorização do policiamento ostensivo e a construção do quê e de quem é percebido como perigo a ser combatido.
Esclarecimento de homicídios nos estados
Essa edição da pesquisa calculou o indicador para 17 unidades da federação, sendo que em 12 delas os dados vieram dos Ministérios Públicos e em cinco dos Tribunais de Justiça. Dez estados não entraram por enviarem dados incompletos, por não indicarem a data do homicídio ou apresentarem um percentual acima de 20% de processos sem essa informação, são eles: Alagoas, Amapá, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Tocantins. Em contrapartida, Ceará, Pernambuco e Santa Catarina, que não haviam entrado na última edição do relatório, voltaram a fornecer os dados completos para compor o indicador.
Dentre os estados com dados consistentes, o Distrito Federal se destaca com a maior proporção de resolução, com 96% dos casos esclarecidos em 2023, seguido de Rondônia, com 92%, um salto de 32 pontos percentuais entre 2022 e 2023. Chama a atenção, também, o menor indicador do país: a Bahia com apenas 13% de casos solucionados.
Quem são as vítimas? A escassez de dados sobre o perfil da vítimas de homicídios
A pesquisa solicitou aos estados dados sobre raça, idade e sexo das vítimas de homicídios dolosos com denúncias realizadas no período de análise. Apenas oito estados que compõem o indicador de esclarecimento nesta edição enviaram pelo menos um dos três dados solicitados.
Acre, Pernambuco, Piauí, Roraima e São Paulo enviaram dados qualificados para a análise de faixa etária das vítimas. A análise desses dados revela que os homicídios esclarecidos seguem de maneira bastante próxima a distribuição etária observada no total de homicídios registrados, com uma forte concentração do total de casos entre 18 a 29 anos.
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Já em relação ao perfil do sexo das vítimas, foi possível analisar os dados do Acre, Amazonas, Ceará, Pernambuco, Piauí, Roraima, Santa Catarina e São Paulo. No Brasil, 89% das pessoas assassinadas são do sexo masculino e 11% do sexo feminino. Porém, no universo de homicídios esclarecidos para os oitos estados analisados, as pessoas do sexo feminino representam 16% das vítimas e as pessoas e do sexo masculino representaram 84%, indicando que os crimes que vitimam pessoas do sexo feminino têm uma probabilidade maior de esclarecimento.
Informações sobre idade e sexo são precárias em boa parte dos estados, porém os dados sobre raça são ainda mais insuficientes. Sete estados possuíam alguma informação sobre a raça das vítimas, porém apenas Acre e Piauí atingiram o critério estabelecido de fornecer informações sobre ao menos 75% dos casos para viabilizar a análise. No Acre, 70% das vítimas foram identificadas como pretas ou pardas e esse percentual foi de 77% no Piauí, proporção próxima à observada para a totalidade de homicídios registrados no país.
“Os dados sobre o perfil das vítimas de homicídios esclarecidos seguem precários. E a falta desses dados impede a realização de diagnósticos qualificados sobre a maneira como a violência impacta os diversos grupos sociais e o desenho de políticas públicas capazes de incidir de maneira focalizada na prevenção desses crimes”, diz Carolina Ricardo.
Avanços e desafios para a criação de um Indicador Nacional
O Sou da Paz defende que a criação de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios produzido por um órgão de Estado é essencial, pois a partir disso é possível monitorar a resposta do sistema de justiça frente aos crimes contra a vida. Desde a primeira edição da pesquisa, houve avanços no debate sobre a criação de um indicador nacional, algumas propostas focadas apenas no trabalho das polícias civis e outras mais abrangentes.
Em 2021, por exemplo, foi apresentada ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) uma proposta de resolução visando instituir o “Banco Nacional de Monitoramento dos Crimes Violentos Letais Intencionais”, com o objetivo de coletar e sistematizar informações enviadas pelos Ministérios Públicos estaduais sobre a elucidação de crimes violentos e também sobre as mortes decorrentes de intervenção de agentes públicos e demais mortes violentas intencionais de policiais em serviço e fora. A proposta, porém, foi arquivada.
Dois anos depois, em 2023, o Comitê Nacional de Diretores dos Departamentos de Homicídio e Proteção à Pessoa elaborou uma Nota Técnica na qual definiu uma metodologia de mensuração do esclarecimento de homicídios. O documento foi remetido para apreciação do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil (CONCPC) e aprovado pelo colegiado em 2024.
Atualmente, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio do Conselho Gestor do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (CONSINESP) e da Diretoria de Gestão e Integração de Informações (DGI), estuda a publicação de uma portaria regulamentando um indicador baseado na metodologia aprovada pelas polícias civis.
Embora tenham ocorrido avanços no debate sobre a criação de um indicador, há ainda desafios importantes na produção de dados qualificados. Os Ministérios Públicos e Tribunais de Justiça passaram por uma modernização tecnológica nos últimos anos, que permitiu a digitalização dos autos processuais, padronização de nomenclaturas, rotinas e procedimentos, além de soluções para compartilhamento de dados entre instituições.
No entanto, dez estados ainda não conseguem ter acesso automatizado em seus sistemas à data em que ocorreu o homicídio, que é um dos dados fundamentais para o cálculo do indicador e para a gestão de diversos outros aspectos do seu trabalho.
“Além da criação de um indicador oficial de esclarecimento de homicídios pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público devem aprimorar suas bases de dados para possibilitar o acompanhamento de todas as etapas de processamento desses crimes e acompanhando o perfil das vítimas, de forma a oferecer à sociedade uma quadro completo sobre a resposta do Estado frente aos crimes contra a vida”, diz Carolina Ricardo.