Nas últimas semanas o debate sobre taxar os mais ricos ganhou força com falas públicas do presidente Lula, e até com ocupação do prédio mais caro do Brasil por militantes mobilizados pela pauta. Mas se a taxação vier enquanto o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) estiver vigente, “pode gerar mais cortes em gastos sociais”, explica Ian Horta.
Ian Horta é mestre em Economia pelo PPGE-UFF, além de pesquisador do Laboratório de Estudos Marxistas da UFRJ (Lema-UFRJ), e explicou em entrevista exclusiva os problemas do NAF, que ele chama de Novo Teto de Gastos.
Ricos pagam menos impostos no Brasil
A taxação dos mais ricos pode corrigir a injustiça tributária brasileira, onde os mais pobres acabam pagando proporcionalmente mais impostos. O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com dados da Receita Federal, mostra que quanto mais rico, menor é a alíquota efetiva paga:
Contribuintes com renda média de R$ 449 mil/ano (cerca de 800 mil pessoas) pagam uma alíquota efetiva de IR de 14,2% – o mesmo percentual pago por quem ganha R$ 6 mil/mês. A partir de $ 1,053 milhão/ano (1% mais rico), a alíquota cai para 13,6%, e para os 0,1% mais ricos (R$ 5,3 milhões/ano), ela é de 13,2%. Entre os 0,01% com renda média de R$ 26 milhões/ano, a alíquota efetiva cai ainda mais — 12,9%.
Proposta de taxação dos mais ricos
O governo propõe que isentar do IR quem ganha até R$ 5.000 por mês, e compensar essa renúncia tributária aumentando a cobrança sobre os super-ricos, com rendimentos acima de:
- R$ 600.000 por ano (R$ 50.000/mês): alíquota de 2,5%
- R$ 1.200.000 por ano: alíquota de até 10% sobre a renda total (incluindo salário, dividendos, aluguéis etc.)
A “taxação dos mais ricos” no debate atual inclui: Isenção de IR para salários baixos + cobrança maior para os muito ricos, taxa sobre dividendos elevados, tributação de fundos exclusivos, tributação de bens de luxo (jatinhos, iates) e há participação do Brasil em debate internacional por imposto sobre grandes fortunas. As propostas da reforma serão explicadas na íntegra no final da matéria.
O problema da política fiscal
Para Ian, o NAF estabelece a lógica do cobertor curto que existe no capitalismo: “você tá numa noite fria: se você puxa de um lado pra cobrir o braço, a perna oposta fica pra fora. Se puxa pra cabeça, o pé fica a mostra”, afirma.
O NAF estabelece que os gastos públicos só podem crescer até 70% do crescimento real das receitas, com um limite máximo de 2,5% acima da inflação por ano. Ou seja, mesmo que o governo arrecade muito mais, ele não pode expandir os gastos na mesma proporção.
Mas quando a arrecadação aumenta, os valores mínimos para Saúde e Educação também crescem. Isso ocorre porque a Constituição obriga que a União destine 15% da Receita Corrente Líquida para a saúde e 18% da receita de impostos para a educação.
“Então temos que pensar: vai ser um imposto em cima dos super ricos? se sim, pela Constituição, a União vai precisar aumentar os gastos com educação. Ou seja, as despesas crescem. Mas tem um teto para o aumento das despesas! Elas só podem aumentar em até 70% do crescimento das receitas. Logo, há sim uma tendência a pressionar a possibilidade de crescimento de gastos em outras áreas que estejam por dentro do arcabouço”, explica o economista.
Se os pisos constitucionais aumentarem muito com a receita, eles podem ocupar uma fatia maior do teto, reduzindo o espaço para outros gastos sociais, como o Bolsa Família, o BPC, e investimentos em políticas públicas diversas.
Ele questiona onde será feito cortes:
“Aí vem a questão: da onde vão cortar? A Previdência tá dentro do arcabouço, e já fazem alguns anos que fizeram uma reforma da previdência. Mas continuam reclamando da pressão dela no orçamento. O crescimento real do salário mínimo já vai ser limitado a 2,5% de crescimento ao ano (que é o limite de crescimento real das despesas por ano) pelo PL 4.614/2024. Essa lei também restringiu o acesso ao BPC.”, argumenta.
Na prática, o que pode acontecer é o governo ser obrigado a cumprir os pisos de saúde e educação e, para isso, fazer cortes ou contingenciamentos em outras áreas, como já tem ocorrido em alguns orçamentos recentes.
“Partindo do aumento das receitas de impostos sobre os super ricos, será que, pra manter os limites do teto do Haddad, vão retirar esses recursos restringindo isenções fiscais a empresas, ou vão continuar o projeto de ataque aos direitos sociais? Parece que a segunda opção é mais provável. Então, sim, taxar os ricos sem revogar o novo teto de gastos pode gerar mais cortes em gastos sociais”, afirma.

O economista entende que o governo criou um dilema com o NAF, que é precisar cortar gastos sociais como BPC e Bolsa Família ou acabar com os pisos da saúde e da educação, que segundo ele já foi cogitado pelo governo:
“Rogério Ceron, Secretário do Tesouro, já falou em 2023 sobre essa possibilidade (acabar com os pisos da saúde e educação). Haddad, em 2024, também falou sobre mudanças nos pisos para evitar pressão nos gastos. Para o governo, esses mínimos constitucionais são péssimos, porque pressionam o arcabouço fiscal – criado pelo próprio governo, diga-se de passagem – e limitam as despesas discricionárias”, explica.
Teto de Gastos ameaça saúde e educação
O governo já reconheceu que há possibilidade do orçamento não sanar todas as necessidades já em 2027, no PLDO (Projeto da LDO) para 2026, enviado em abril de 2025, o texto diz que, com o retorno dos precatórios ao cálculo do teto fiscal em 2027, o espaço para despesas discricionárias vai se reduzir drasticamente, a ponto de haver risco de inviabilizar serviços públicos.
Declaração oficial do secretário Clayton Montes, da Secretaria de Orçamento diz que: “Para 2027, o número [de R$ 122 bilhões de despesas discricionárias] já é bastante comprometedor… não comporta todas as necessidades de investimento”, disse.
A Constituição obriga que a União gaste pelo menos, 15% da Receita Corrente Líquida com saúde e 18% da Receita de Impostos com educação. Ou seja: o valor total desses mínimos é sim obrigatório. Mas no orçamento eles são classificados como:
Parte obrigatória: Segundo site Congresso Nacional, são aquelas “que o governo não pode evitar pagar por força de lei” como salários de professores, médicos etc.
Parte discricionária: Segundo site Congresso Nacional, “cuja execução está sujeita à avaliação de oportunidade pelo gestor”, como manutenção de hospitais, compra de materiais, obras de escolas, expansão de serviços etc.
E é nessa parte “discricionária” que está o problema! Em 2027, o governo é obrigado a atingir o valor mínimo constitucional da saúde e educação. Mas só tem R$ 65,7 bilhões livres para todas as despesas discricionárias (saúde, educação, universidades, obras, tudo).O mínimo para complementar saúde e educação com ações discricionárias é de R$ 76,6 bilhões.
Resultado: já falta R$ 10,9 bilhões, e ainda nem falamos do resto da máquina pública. Mas Ian acredita que abandonar os mínimos da saúde e educação, não seria bom pro governo, já que isso foi conquista da Constituição Federal de 1988.
“Me parece que isso seria um desastre político para o PT, então, pelo que tenho visto, esse assunto não voltou a surgir. Mas sempre é uma possibilidade: o arcabouço, para o governo, parece mais importante do que manter sua plataforma originária de defesa dos trabalhadores. Mas já faz um tempo que o PT abandonou isso como objetivo principal (mesmo que se mantenha no discurso), certo?”, questionou retoricamente.
Brasil não precisa de uma regra fiscal tão dura
O Novo Arcabouço Fiscal e a meta de déficit zero estabelecidos pelo governo, partem da premissa de que é preciso haver uma regra que fiscaliza os gastos do governo para não gastar mais do que se arrecada. Mas não é isto que países desenvolvidos tem feito nos últimos 40 anos.
O arcabouço como explicado limita o crescimento do gastos em até 70% do crescimento real das receitas, com um limite máximo de 2,5% acima da inflação por ano. Em matérias anteriores economistas já mostraram ao NP o funcionamento da regras fiscais. Mestrando em Economia Política, Wallace Borges explicou que:
“A meta de déficit zero, é a receita do governo, tudo que arrecada, sendo igual aos gastos, tirando a dívida pública”, explica.
De acordo com o economista, Gabriel Xavier, países desenvolvidos trabalham em déficit fiscal há quase 40 anos, ou seja os países gastam mais do que arrecadam.
O que confirma a interpretação do economista é que países como o Japão, país mais endividado do mundo, em 2023 fechou o ano com a divida equivalendo a 266% do seu PIB continua com crédito internacional.
A China tem uma dívida que equivale 86% do PIB. A relação dívida PIB dos Estados Unidos está em 120%. Os dados foram tirados de: World Trend Plus’ Global Economic Monitor, Fundo Monetário Internacional e Federal Reserve Bank of St. Louis, respectivamente. Dados de 2024.
Departamento do tesouro dos EUA informou que o último trimestre de 2024 teve recorde de déficit nas contas públicas, chegou a 711 bilhões de dólares (R$ 4,4 trilhões, na cotação da época). Por exemplo. O déficit fiscal da China está orçado para 8,8% do PIB em 2025, ante 6,5% em 2024, segundo uma base ajustada pela Fitch Rating.
Três países com diferentes modelos econômicos, mas que gastam mais do que arrecadam, todos os três assim como o Brasil possuem soberania monetária, ou seja emitem a própria moeda. O Brasil emite o Real, assim como o Japão emite o Yen. A regra não é válida para países da Zona do Euro que utilizam como moeda comum o Euro, por isso não emitem sua própria moeda sozinhos.
“O Brasil, por exemplo, nunca ficará sem Reais para pagar a dívida, sempre pode emitir mais Reais. O Brasil não emite Dólar, precisa primeiro vender mercadorias no comércio exterior para comprar esses dólares para abater a dívida“, disse Gabriel. Confira na íntegra a matéria sobre emissão de moeda.
E ele desmente que “imprimir dinheiro” gere necessariamente inflação. “Pode gerar, mas não necessariamente como um liberal pensa, como se fosse uma relação de 1 pra 1, que seria como se a emissão de moeda crescesse 10% então a inflação aumentaria 10%. Vai causar [inflação] quando a economia já está operando em plena capacidade e o governo impõe mais estímulos a essa capacidade via emissão de moeda“, explica.
A economia estar em plena capacidade seria por exemplo alcançar pleno emprego, o que não é o caso do Brasil, porque a taxa de desocupação está em 6,2%, mas se contabiliza os 39,3 milhões de trabalhadores na informalidade como ocupados. Confira matéria sobre informalidade no Brasil.
A reforma tributária proposta
O governo propõe que isentar do IR quem ganha até R$ 5.000 por mês, e compensar essa renúncia tributária aumentando a cobrança sobre os super-ricos, com rendimentos acima de:
- R$ 600.000 por ano (R$ 50.000/mês): alíquota de 2,5%
- R$ 1.200.000 por ano: alíquota de até 10% sobre a renda total (incluindo salário, dividendos, aluguéis etc.)
O objetivo estimado é arrecadar aproximadamente R$ 25 bilhões em 2026, compensando a isenção para cerca de 10 milhões de pessoas. Também está sendo proposta a retenção mínima de 10% sobre dividendos que ultrapassem R$ 50.000 por mês — incluindo dividendos recebidos por residentes no exterior.
Já em vigor por MP desde 2023, o governo passou a taxar com alíquota própria os chamados “fundos exclusivos”, que exigem aporte mínimo de R$ 10 milhões estimativa de arrecadação: R$ 24 bilhões entre 2023–2026.
A PEC da reforma tributária no Senado prevê a cobrança de IPVA sobre jatinhos e embarcações de luxo, modalidade antes isenta, com potencial de gerar cerca de R$ 4,7 bilhões/ano.
No G20 (em 2024), o Brasil defendeu uma taxação global mínima de 2% sobre a riqueza dos bilionários, com potencial de arrecadar US$ 200–250 bilhões/ano, proposta liderada pelo economista Gabriel Zucman.
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