“Ia falar do seu corpo / de suas mãos / amada / quando soube que a polícia espancou um companheiro / e o poema não saiu”. Os versos do poeta e cineasta pernambucano Solano Trindade caem como uma luva para falar do Tindó, a live que fomenta as diversas formas de afeto entre pessoas negras. Aliás, esses mesmos versos foram citados por Roger Cipó, o idealizador do projeto, ao ceder a entrevista que vem a seguir.
Fotógrafo e influenciador digital, o paulista tem usado o Instagram para realizar um grande encontro virtual. Toda sexta-feira, a partir de 23h, centenas de pessoas se conectam no Tindó, o Tinder do Cipó. “Faço às 23h porque é o horário em que a galera costuma ir pro baile, pra balada, pro motel, pra namorar…”, explica.
O projeto, que tomou outros contornos devido à pandemia, já teve pedido de perdão de ex-namorado, declaração de amor, pedido de namoro… Enfim. Funciona assim: Roger inicia a live e vai chamando algumas pessoas que estão participando para que elas se declarem/flertem com outras pessoas que também estão na live, e depois disso há um espaço para que a pessoa citada responda. Ou seja: trata-se de um ambiente favorável à troca de afeto, sobretudo, entre pessoas pretas.
“Amor preto, pra mim, é político, porque subverte a lógica da branquitude: uma lógica que só tem violência pra gente em todos os aspectos”, defende.
Confira a entrevista:
Como surgiu o Tindó?
O Tindó é a continuidade de um projeto que desde o ano passado eu tenho produzido, a princípio, chamado “Papo Foda” – uma série de diálogos que abri com meu público a partir de stories, falando sobre saúde sexual e qualidade de relacionamento com foco em pessoas pretas, compreendendo como o racismo impacta na nossa sociedade. É sobre romper com as construções patriarcais, impositivas e hierarquizadoras das vivências, do sexo, do amor… E reelaborar o amor nessa sociedade, nesse momento, é também pensar como o patriarcado cooptou a possibilidade das pessoas de amar. Eu tenho feito uma crítica que as formas de sexo e de afeto que a gente tem experimentado no ocidente são medíocres, porque são muito ligadas no estabelecimento de poder de corpos masculinos ou corpos masculinizados sobre corpos femininos ou corpos feminilizados. É sempre algo onde a identidade masculina exerce poder sobre outro corpo. O “Papo Foda” era uma conversa que começava nos stories e, no dia seguinte, a partir das respostas, eu elaborava um texto e postava no feed para continuar a conversa ali sobre sexo e afeto. Por conta da pandemia, tive que migrar essa conversa para live, e, numa dessas lives, percebi que a audiência, que as pessoas ficavam conversando entre si pelos comentários, com sinais de flerte. E eu passei a ser um interlocutor disso.
Qual a importância de, no meio de uma pandemia que requer isolamento social, existir um ambiente que fomente o amor preto?
Com todas essas questões de violências que nos atravessam, resolvi manter as lives porque precisamos garantir um espaço preto, um espaço saudável, um espaço de construção para que a gente tenha alguma saúde, para que a gente tenha alguma possibilidade de respiro; de se conectar, sentir afeto e flertar de diferentes formas. Eu tenho feito a abertura dessas lives com especialistas e intelectuais ligados a questões de corpo, de sexualidade, de subjetividade. Falei com urologista preto, terapeuta sexual preta, ativistas transsexuais pretos e pretas… O Tindó tem permitido esse respiro pra gente. Essa sociedade racista elabora as pessoas pretas para os afetos do ódio, da violência. Então, penso que o Tindó é uma forma também de enfrentar o racismo. No contexto da pandemia, de distâncias terríveis e de violências letais contra nossos corpos, é importante.
O Tindó vai continuar após o fim do isolamento? Vai se transformar em outro projeto?
Há uma urgência de afeto, de encontro entre pessoas pretas. Tem gente que quer desenvolver aplicativo, e eu estou super à disposição! Quando a pandemia acabar, não sei se a live se sustenta, porque às sextas-feiras, num contexto fora de pandemia, a maioria da galera vai estar no rolê, na balada. Como agora não está, a gente faz essa live. Quando acabar, espero que pessoas pretas se encontrem para se potencializarem. Estou muito empenhado nisso.
Vivemos protestos raciais fortíssimos decorrentes do assassinato de George Floyd. Você tem notado alguma mudança de comportamento nas suas lives por conta disso? Sente que há mais dor no ar?
A mudança tem sido positiva, porque as pessoas entendem que, mesmo nesse contexto de violências mil, há a possibilidade de respirar, de estar junto, que é importante. Mesmo todo mundo atravessado por muita dor, a gente tem possibilidade de se fortalecer. A certeza que esse lugar existe, um lugar para se relacionar com pessoas pretas, é o que tem servido de alívio para mim e para as pessoas que estão nessa comigo.
Descobri agora no Estação Livre, sobre Roger Cipó, e fiquei triste por não ter nascido nessa geração. QUE MARAVILHA!!!@