Por Jéssica Silva de Oliveira – Advogada Civilista
Não é de hoje que muito se debate sobre a representatividade da população negra em posições de prestígio, nos ditos espaços de poder, historicamente ocupados por pessoas brancas.
No cinema, por exemplo, no início de junho, a plataforma de streaming HBO Max, em meio à onda de protestos contra a violência policial e o racismo nos EUA, decidiu pela retirada temporária do filme “E o vento levou”, em razão da representação racista de pessoas negras, retratadas na obra como conformadas com a condição de escravidão.
Há poucos dias, a HBO Max reinseriu o longa em seu catálogo, porém acompanhado de um vídeo que debate o contexto histórico e racial do momento em que o filme foi lançado (1939) e de outro vídeo debatendo o complicado legado do filme.
Hattie McDaniel, que interpretava a empregada doméstica e ex-escrava Mammy, em “E o vento levou”, foi a primeira afro-americana a ganhar um Oscar, tendo desempenhado ao longo de toda sua carreira papéis semelhantes: a empregada doméstica que é “quase da família”, sem vida própria e que possui uma boa relação com os patrões.
Termos uma pessoa negra ocupando espaços majoritariamente brancos, não significa que ela seja porta-voz de sua raça ou que o racismo acabou
Por óbvio, houve muitas críticas ao trabalho de Hattie por parte de organizações afro- americanas, como a National Association for the Advancement of Colored People – NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), face ao reforço de estereótipos racistas no cinema. E é neste ponto que surge a pergunta: até onde representatividade é poder?
Bom, o fato de termos uma pessoa negra ocupando espaços majoritariamente brancos, não significa que ela seja porta-voz de sua raça ou que o racismo acabou. Em alguns casos, a representatividade pode ser, sim, um reflexo da luta antirracista, mas dependendo do contexto, pode ser uma verdadeira armadilha, uma vez que, estar em uma posição privilegiada, não necessariamente significa que esta pessoa negra tem poder decisório para provocar alguma mudança.
Além disso, ainda há de se considerar que não existe uma unicidade de pensamento que represente os anseios de toda a população negra, o que não falta é divergência. Prova disso são as pessoas negras aliadas ao atual governo, usadas como token, de maneira a chancelar políticas reacionárias que afetam diretamente a população negra.
Em meio à recente nomeação de Carlos Decotelli como Ministro da Educação (primeiro ministro negro no governo Bolsonaro), considerando que as pautas mais sensíveis à população negra, como a política de cotas raciais, sofrem constantes ataques de um governo de extrema-direita, não é difícil prever que a representatividade, neste cenário, nas palavras de Silvio Luiz de Almeida, autor de “O que é racismo estrutural?”: “tem o efeito de bloquear posições contrárias ao interesse do poder instituído e impedir que as minorias evoluam politicamente, algo que só é possível com o exercício da crítica”1.
Assim como Hattie McDaniel que, mesmo sendo uma das estrelas de “E o vento levou”, somente pôde comparecer à cerimônia do Oscar mediante uma autorização especial solicitada pelo produtor do filme, tendo que se sentar em uma mesa ao fundo do local do evento (a Califórnia, local do evento, era um estado segregado na época), é inegável que qualquer pessoa negra que concorde em integrar um governo autoritário e com políticas nocivas à população negra, não
1 ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018. Pg.87.
tenha condições mínimas de provocar, sozinha, alguma mudança significativa no sistema dominante.
Desta forma, nota-se que, representatividade é poder, quando não se perde de vista em qual contexto, ocupar espaços privilegiados, provocará de fato algum tipo de mudança nas estruturas que dependem da perpetuação do conceito de inferioridade racial da população negra para se retroalimentar.