A influenciadora digital Aline Bardy Dutra, conhecida como “Esquerdogata”, foi presa em Ribeirão Preto (SP) por injúria racial após desacatar policiais durante uma abordagem na madrugada de sábado (26). Segundo o boletim de ocorrência, ela teria resistido à prisão e insultado um dos agentes com injúrias de cunho racial.
Em nota divulgada nesta segunda-feira (27), o advogado da influenciadora afirmou que Aline sofre de alcoolismo e vai iniciar tratamento. Ele declarou ainda que o episódio teria sido resultado de uma “mistura de álcool, remédios e medo da polícia”. A defesa classificou o caso como “um surto” e disse que a cliente está “abalada e envergonhada”.
O caso rapidamente ganhou repercussão nas redes sociais, reacendendo o debate sobre como a sociedade e o sistema de justiça tratam pessoas acusadas de racismo. Isso porque a associação entre atitudes racistas e problemas de saúde é um recurso cada vez mais recorrente em discursos de defesa, ainda que não exista qualquer base científica que comprove uma ligação entre doenças ou vícios e comportamentos discriminatórios.

“Todo racista tem um problema de saúde”? Dados e contexto
Levantamentos de órgãos como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram um aumento nas denúncias de injúria racial e racismo nos últimos anos. Apenas em 2023, foram mais de 12 mil registros, um salto de 35% em relação a 2022. Em muitos dos casos que ganharam repercussão nacional, os acusados recorreram a justificativas como depressão, ansiedade, uso de medicamentos ou dependência alcoólica.
Exemplos não faltam. Em 2022, um empresário em Goiânia que chamou um entregador negro de “macaco” disse, em audiência, que passava por “crise de ansiedade”. No mesmo ano, uma mulher flagrada ofendendo um funcionário de mercado em Salvador afirmou estar “em tratamento psiquiátrico”. Em 2023, uma advogada de Belo Horizonte acusada de injúria racial também declarou ter “problemas emocionais” e “histórico de depressão”.
Especialistas em comportamento e justiça criminal alertam que essa estratégia de defesa não deve ser confundida com diagnóstico médico, e muito menos servir de atenuante automático. “É comum que pessoas brancas, quando flagradas em atos de racismo, sejam humanizadas pela narrativa da doença. Enquanto isso, as vítimas seguem sendo desumanizadas”, explica a pesquisadora e psicóloga Karla Nascimento, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Para estudiosos do tema, a tentativa de associar comportamentos racistas a distúrbios de saúde funciona como uma forma de desresponsabilização individual e social. Ao transformar o racismo em “sintoma” e não em “escolha”, cria-se uma narrativa que mascara sua origem estrutural.
“Atribuir o racismo ao álcool, ao estresse ou à depressão é um recurso que ameniza a gravidade do ato e desloca o foco do debate. O problema não é de saúde, é de poder, de privilégio e de valores”, afirma a socióloga Márcia Lima, professora da USP e pesquisadora do Afro-Cebrap.
Além disso, alcoolismo e transtornos mentais são condições sérias, que merecem tratamento e empatia, mas não podem ser usados como justificativa para a prática de crimes de ódio. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 2,3 milhões de brasileiros convivem com dependência alcoólica, mas isso não significa que essas pessoas sejam mais propensas ao racismo ou à violência.
Padrão de defesas em casos de injúria racial
O caso de Aline Bardy Dutra segue sob investigação e será enquadrado na Lei nº 14.532/2023, que equiparou a injúria racial ao crime de racismo, com pena de até cinco anos de prisão.
Independentemente do desfecho judicial, o episódio expõe um padrão perigoso: cada vez que alguém acusado de racismo alega um “problema de saúde”, a estrutura que sustenta a desigualdade racial ganha mais um escudo simbólico.
O racismo não é um desvio individual, nem uma crise momentânea. É um sistema de poder que se manifesta na linguagem, nas relações e nas instituições. E, ao contrário do que muitas defesas sugerem, não se trata de uma enfermidade a ser tratada, mas de uma violência a ser enfrentada.
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