“Você sabe com quem está falando?” Essa é uma daquelas frases típicas de pessoas que possuem algum tipo de poder, ou convivem com outras que detém e, dando sequência à série sobre o descobrimento ou invasão do Brasil, historiadores debatem as marcas materiais e culturais do processo histórico brasileiro.
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Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Romulo Barros, argumenta que muitas vezes, tendemos a achar que as marcas da nossa história estão presentes no que chamamos de patrimônio material, nos monumentos construídos em pedra e cal, nas estátuas de bronze das praças públicas, nos grandes palácios que recebem turistas todos os dias em todas as capitais de passado colonial no Brasil. Mas ele entende que as marcas mais profundas estejam no imaterial, no campo da cultura.
“‘Você sabe com quem está falando?’ é uma frase muito recorrente em atritos diversos e nos mais diferentes locais deste país”, diz ele.
O doutor explica que no Brasil colonial a lei que se aplicava ao indígena, não se aplicava ao branco, “quem dirá ao negro”. durante o período imperial, a lei que se aplicava aos brasileiros natos, não se aplicava aos portugueses, ou mesmo aos ingleses, sujeitos às suas próprias leis, ainda que tivessem cometido eventuais crimes aqui.
“Isso fazia destes ‘fidalgos’, como eram conhecidos os nossos nobres, figuras fora do alcance de qualquer punição. Fidalgo, que inclusive, significa ‘filho de algo'”, disse.
”A proveniência de alguém, para a cultura brasileira, especialmente a proveniência branca de alguém, faz deste um ser inimputável, vou melhorar: ele não pode ser multado, pois está acima do policial; ele não precisa esperar nas filas, pois está socialmente acima de todos os que estão fora do seu círculo social mais estrito. Que, não por coincidência, era formado por europeus e seus descendentes no tempo da colônia, do império e segue sendo formado por estas mesmas pessoas e com os mesmos sobrenomes até os dias da nossa república. Apesar de extraoficialmente, seguimos tendo nossos fidalgos”, argumenta Romulo.
Jonathan Raymundo, professor de história e filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) entende que a ideia de descoberta do brasil mostra marcas na nossa sociedade até hoje. “Principalmente na continuação desse primeiro ato cínico e trágico de olhar uma terra habitada por pessoas e desconsiderá-las como se essas pessoas não fossem pessoas, ou como se elas não fossem capazes de ter consciência de si mesmo e do seu território”, diz o professor.
“Esse esvaziamento do outro enquanto humano, enquanto racionalidade, civilização, história, cultura, modos de ser e estar é um dos pilares centrais dessa ideia colonial que nos explica, bem como das produções de violências que vemos na história do Brasil”, acrescenta Jonathan.
Lívia Teodoro, que é historiadora graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), concorda com Romulo e, para ela, a “síndrome do vira-lata” é uma manifestação desse fenômeno, caracterizada pela valorização excessiva do que é europeu em detrimento do que é nacional, presumivelmente porque os responsáveis por “descobrir” e “civilizar” uma terra considerada atrasada, são percebidos como superiores.
“Além da persistência da meritocracia, na qual o mérito é associado ao suposto descobrimento e à subsequente “civilização” do país pelos colonizadores, perpetuando privilégios para os descendentes daqueles que desbravaram a terra, há outras implicações significativas”, diz a historiadora.
Segundo ela, a ideia de descobrimento do Brasil também está ligada à construção da identidade nacional e à percepção de inferioridade cultural. A glorificação dos colonizadores europeus como heróis nacionais e a marginalização das contribuições das populações indígenas e africanas para a formação da sociedade brasileira são reflexos dessa narrativa.
“Essa visão distorcida da história nacional influencia não apenas a autoestima coletiva, mas também políticas públicas, relações sociais e percepções de identidade e pertencimento. Portanto, é evidente que a ideia de descobrimento do Brasil continua a moldar as dinâmicas sociais e culturais contemporâneas, destacando a importância de uma reflexão crítica sobre o passado para compreender e enfrentar os desafios do presente”, finaliza
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