Matéria publicada originalmente pelo Coletivo Entre Becos, de Salvador (BA), e replicado na íntegra e com as devidas autorizações.
Universitárias apontam as adversidades enfrentadas e quais as políticas de apoio necessárias para dar conta das duas rotinas
“No mestrado, a orientação foi a etapa mais difícil para mim, em uma universidade que não foi pensada para as mulheres pretas e para mães pretas. Nos eventos acadêmicos, por exemplo, poucos oferecem espaços onde as mães possam deixar seus filhos com pessoas preparadas”, desabafa a mestranda Márcia Tavares, 48, moradora de do bairro de Periperi, em Salvador.
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O relato da pesquisadora faz parte de uma realidade compartilhada por inúmeras mães periféricas que precisam conciliar as atividades domésticas e universitárias.
Márcia está no período final da pesquisa sobre a violência doméstica contra mulheres no Subúrbio Ferroviário de Salvador, no Instituto de Geografia, da UFBA (Universidade Federal da Bahia), e tem três filhos. Jessica Monique Nunes, 25, a filha especial, é uma pessoa com deficiência. Dar atenção à filha e se dedicar aos estudos é uma tarefa que realiza, muitas vezes, ao mesmo tempo.
“Minha casa não tem uma estrutura legal. Então, estudo na sala, na cozinha, no quarto, em qualquer espaço da casa. Tenho outras pessoas nessa casa, há barulho neste espaço”, conta.
Ao entrevistar Márcia, por telefone, a voz da Jessica Monique se sobressai quando se aproxima e pergunta algo à mãe. “Você consegue ouvi-la? Então, você entende? Às vezes, estou numa aula online, e não consigo abrir [a câmera ou áudio] para falar ou participar, por causa do barulho”, explica.
Já a historiadora e mestranda pela UNEB (Universidade Estadual da Bahia), Caroline Santiago, 25, conta que não é fácil ajustar a atividade da universidade com os cuidados da filha Aila Santiago, 11. A moradora do bairro do Bom Juá se divide em uma jornada de 8 horas de trabalho como auxiliar administrativa, além das demandas da formação e da maternidade.
“Sendo bem honesta, eu não consigo conciliar como gostaria os estudos e a vida pessoal. Faço o que é prioridade e como posso. Pois, além das demandas da universidade, de cuidados com minha filha, atenção aos estudos dela e aos meus, tenho meu tratamento psicológico”.
No artigo “Parentalidade e carreira científica: O impacto não é o mesmo”, Leticia Oliveira, uma das autoras, reúne estudos que mostram como a desigualdade de gênero interfere na construção da carreira acadêmica das mulheres. No Brasil, elas dedicam o dobro de tempo semanal que os homens nas tarefas domésticas.
“Sabe-se que a jornada de trabalho acadêmico-científico, frequentemente, ultrapassa o tempo de trabalho regular, demandando horas extras para escrita e revisão de artigos, leituras e estudos, orientação de estudantes etc. – horas que, muitas vezes, não estão disponíveis na rotina das mulheres que conciliam esse trabalho com o cuidado da casa e dos filhos”, explica.
Para Márcia, estudar numa instituição, que ainda não reconhece as particularidades das mulheres, é desestimulante. “Não pude participar de eventos porque não tinha com quem deixar minha filha. Às vezes o evento não é na cidade”, conta.
Abandonar a carreira acadêmica é uma das atitudes que muitas mulheres adotam, por isso a rede de apoio tem sido o suporte para continuarem, como explica Caroline. “Eu tive minha avó e minha mãe que cuidaram da minha filha para que eu estudasse. Muitas não têm nem o incentivo da família, condições psicológicas para continuar. Pois a maternidade é uma jornada solitária”.
Diante das demandas apontadas pelas mulheres na academia, a autora Letícia Oliveira elenca algumas políticas que podem diminuir o impacto negativo que a desigualdade de gênero provoca na carreira das mães pesquisadoras.
“Políticas de apoio à maternidade na ciência devem considerar que mães de filhos com deficiência experienciam um impacto ainda mais significativo em sua carreira e produtividade científica”.
“Políticas de avaliação de currículo considerando impacto na maternidade, política de apoio para retomada de carreira após licença maternidade, programas de apoio a participação de eventos para cientistas responsáveis pelo cuidado dos/as filhos/as, entre outras”.
Em 2024, o CNPQq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), agência de fomento à ciência, tecnologia e inovação no Brasil, realizou mudanças nos critérios de avaliação das pesquisadoras mães no que se refere à concessão de bolsas. Agora, foi definido o aumento para dois anos no período de produtividade, por cada parto ou adoção.
Apesar dos obstáculos , persistência e resiliência movem a pesquisadora Márcia a alcançar seus sonhos. “Enquanto mulher e mãe, essa situação é um fardo. Ainda assim, nós a enfrentamos porque temos um objetivo, algo que queremos alcançar, como poder proporcionar para minha filha, que é PCD, e para minha outra filha, uma qualidade de vida melhor, por meio de um emprego melhor”.
Reportagem de Rosana Silva e Bruna Rocha
Fotografia de Gabrielle Guido
Edição de Cleber Arruda
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