A Pró Reitora Cassia Maciel ressalta a importância das políticas afirmativas para a comunidade negra
A Lei Orçamentária Anual (LOA) para o ano de 2021 foi aprovada pelo Congresso Nacional com cortes em áreas primordiais para o combate à pandemia da COVID-19, como a saúde, ciência e tecnologia e a educação e a UFBA não ficou de fora. O teto de gastos é de R$ 1,48 trilhão, de acordo com o Projeto de Lei 28\2020, que foi aprovado na Câmara dos Deputados com 346 votos a favor e, no Senado, com aprovação de 60 parlamentares, seguindo para sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
O orçamento do Ministério da Educação teve um corte de 74,56 bilhões, 27% menor em relação ao orçamento de 2020. Contudo, as universidades públicas já vinham sofrendo com cortes desde o primeiro ano do mandato de Jair Bolsonaro, quando o então Ministro da Educação, Abraham Weintraub, cortou 30% do orçamento das universidades, especialmente da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade de Brasília (UNB), as acusando de promoverem uma “balbúrdia”.
Nesse contexto, o Notícia Preta entrevistou Cassia Maciel, psicóloga e Pró Reitora de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE) da UFBA, que contextualiza a situação da assistência estudantil e os impactos no acesso e permanência de estudantes negros, indígenas e quilombolas em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Ela ressaltou a conjuntura orçamentária da UFBA desde o primeiro corte: “A questão do orçamento, eu acho importante a gente voltar até 2019 e você já citou esse corte selecionado de três universidades. E lembremos que, em 2019, o orçamento das universidades foi bloqueado. Ele tinha sido aprovado e estava disponível. Mas no meio do caminho, por uma decisão do MEC, ele foi bloqueado. Então, você deve se lembrar, houve essa luta social pelo desbloqueio, talvez ainda um dos maiores atos, dos grandes atos, que fizemos presencialmente na porta da Reitoria. Mas a ideia que eu quero passar é a seguinte: 2019 bloqueio do orçamento que estava sendo executado. 2020 contingenciamento do orçamento, incluindo assistência estudantil, que significava que eles iriam liberar uma parte e a outra parte precisava de votação da Câmara dos Deputados. Em 2021, nós vivenciamos na pele o corte mesmo. Então, a Lei do Orçamento de 2021 foi preparada em 2020. Ela foi apresentada à sociedade em 2020 e o que aconteceu ali, naquele momento, já na hora de elaborar esse orçamento para 2021, eles operaram o corte 18,32% incluindo a assistência estudantil. Tradicionalmente, o governo sempre deixou o orçamento do ano passado e fazia um acréscimo linear de até 10% mais ou menos. Então, para 2021 o orçamento foi inscrito com corte já na lei. Passamos para a segunda etapa, que foi debater isso com a sociedade nos últimos meses e aguardar a aprovação desse orçamento. Como você sabe, foi aprovado agora na última semana de março na Câmara dos Deputados. Esse corte da universidade não foi revertido. O orçamento da UFBA, tanto geral quanto de assistência estudantil, foi aprovado com 18,32% a menos. Esse corte já foi inscrito na LOA e aprovado, aguardando sanção presidencial“, explica a Pró-Reitora sobre a situação vivida pela UFBA desde o início do mandato de Bolsonaro.
Permanência de estudantes cotistas e de vulnerabilidade socioeconômica na UFBA
O Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), consolidado pelo Decreto 7.234\2010, garante a permanência de estudantes em vulnerabilidade socioeconômica no ensino superior público. Com o novo orçamento, a continuidade de programas de permanência também sofreram cortes, sendo os estudantes em vulnerabilidade os mais atingidos. “Nós publicamos um comunicado em que a gente está reduzindo o valor das bolsas acadêmicas para 250 reais, ou seja, totalizam aí pouco mais de mil bolsistas entre Permanecer, Sankofa, Projetos Especiais, Programa de Acessibilidade, Projeto Tendas Virtuais. Essas bolsas vão passar a ser de R$ 250, isso já tem um impacto direto. Os estudantes que estão recebendo R$ 400 de Restaurante Universitário (RU) e possuírem outra bolsa de mesmo valor ou mais passarão a receber apenas R$ 200 do R.U. No segundo semestre, nós vamos permitir a manutenção da assistência estudantil apenas para quem estiver inscrito em componentes curriculares ou trancado por motivo de saúde. Suspendemos temporariamente o auxílio saúde, suspendemos o material didático. Essas medidas são as vão permitir a gente terminar esse ano sem excluir ninguém e sem acabar com nenhum programa, ao mesmo tempo em que a gente vai lutando pela recomposição do orçamento. Se tiver uma recomposição, obviamente a gente vai restabelecer o valor através das bolsas. Então, há um impacto direto material, simbólico, psicossocial e ele é muito forte. Nós precisamos, de fato, fazer isso para não excluir ninguém e lembrando que a gente está ainda com uma característica que quem poderia ter se graduado no ano passado e início deste, em função da pandemia, muitas pessoas tiveram que esperar. Muita gente não concluiu a grade não porque não quis, mas porque não teve condições, porque precisava de um componente curricular, de uma atividade prática ou de um estágio de alguma coisa. Então, estamos com um contingente que precisa sair e está ansiosa por isso, quer concluir sua graduação“.
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A entrada pelo Sistema de Seleção Unificada (SISU) está acontecendo, especialmente para a UFBA, para o 2° semestre de 2021. Ao todo, a Universidade oferece 4.693 vagas, distribuídas entre as cidades de Camaçari, Salvador e Vitória da Conquista. Sobre a entrada de calouros e calouras, segundo a pró-reitora, surge a preocupação de como esses estudantes irão encontrar as políticas de assistência estudantil. Sobre isso, Maciel ressalta que é importante realizar uma análise de conjuntura. “Estamos com um contingente de calouros entrando oriundos de famílias completamente fragilizadas, vulnerabilizadas e empobrecidas estrategicamente pelas políticas de Estado no meio de uma pandemia. Essa estudante está chegando na UFBA sem nenhum tipo de auxílio e sem que sua família também tenha condições de mantê-la na universidade no contexto da pandemia. Então, as demandas sociais, relativas a uma política de assistência social quase inexistente, rebatem na universidade. Infelizmente, a assistência estudantil não é robustecida o suficiente, do ponto de orçamento, para que ela consiga fazer face ao empobrecimento das famílias. E não é só o estudante, é a família inteira que entra nessa nessa vulnerabilização, é um quadro muito delicado, em que a gente observa que o Executivo Federal, que deveria ser de fato detentor, o propositor, o mantenedor dessas políticas públicas de permanência na educação, atacou diretamente essas políticas, ao meu ver, com um objetivo claro de retirar a população negra, as mulheres, as pessoas com deficiência, indígenas, quilombolas. Na UFBA a gente tem cota para refugiados, famílias em vulnerabilidade socioeconômica independente de raça\cor.
Ainda dentro da análise de conjuntura, é importante pontuar sobre a situação do mercado de trabalho, onde os graduandos estão saindo das universidade para entrar no mercado completamente precarizados, com cada vez menos direitos trabalhistas, agravado pelo contexto da pandemia. “Querem tirar essas pessoas da universidade e empurrar para um mercado de trabalho precarizado, exploratório e completamente brutal depois da reforma da Previdência. Quando a gente observa quem mais morreu na pandemia, pessoas negras. Quem são os menos vacinados, pessoas negras. Essas pessoas estão em ocupações precarizadas, que as obrigam a sair de casa, seja porque elas não têm estrutura em casa para se manter com saúde, se alimentar, seja porque elas são obrigadas a sair para trabalhar. É nesse preâmbulo que elas se infectam, mas não têm acesso a serviços de saúde e também não têm acesso à vacina. Objetivamente quem está dentro de seus carros com ar condicionado protestando e pedindo a abertura da economia, como se houvesse um uma falsa dicotomia entre economia e vida. A Escola de Administração da UFBA publicou um documento muito importante sobre isso dizendo que não há essa dicotomia entre vida e economia, ou seja, para que esse pessoal aí na universidade estudando se a gente está precisando de gente aqui para trabalhar de modo precarizado. O que me parece é uma engrenagem racista, sexista, autoritária, de mentalidade colonial para esvaziar as universidades e colocar a população jovem no mercado de trabalho precarizados”.
Como os cortes impactam na saúde mental dos estudantes
O adoecimento mental é uma pauta cada vez mais abordada, inclusive na universidade, onde programas de apoio psicossocial tem sido cada vez mais procurados. Segundo o Ministério da Saúde, o risco de suicídio entre jovens adolescentes negros homens, é 50% maior do que entre os jovens brancos, já com as mulheres, o risco é 20% maior entre jovens negras do que brancas, Durante a pandemia, esse quadro foi agravado por fatores sociais e econômicos causados pela crise sanitária. A respeito disso, enquanto psicóloga e Pró-Reitora, Maciel reflete sobre como essas condições orçamentárias impactam diretamente na vida discente: “Falando sempre de um duplo lugar, porque essa minha formação enquanto psicóloga, isso engendra também uma questão ética. Então, as coisas vão sempre juntas. Eu digo a vocês que isso nos coloca em sinal completo de alerta. A UFBA tem várias estruturas de acolhimento e atendimento psicossocial e psicológico. Mas isso fica disperso e não aparenta muitas pessoas como uma rede que pode ser acessada. Já durante a pandemia, criou a Rede de Atenção Psicossocial da UFBA. O objetivo é juntar esses serviços numa porta de entrada. Temos um Núcleo de Atenção à Saúde da PROAE, Serviço de Psicologia da Escola de Psicologia, Programa de Extensão da Escola de Psicologia, Núcleo de Atenção Psicopedagogia Medicina, Medicina Veterinária, Politécnica. O próprio SMURB, Setor de Psicologia do UF, Setor de Psicologia da Climério de Oliveira, esses órgãos todos eles estão organizados em uma rede que é presidida pela professora Denise Vieira, que é da PRODEP, e vice presidida por mim, mas eu não estou atuando, indiquei uma representante para atuar nessa rede porque eu estou com sérias demandas relativas ao orçamento. Nós acabamos de criar um Instagram da rede e a ideia é que a gente tenha uma porta de entrada para que as pessoas possam procurar. Agora, qual o desafio de tomar medidas de prevenção e de promoção à saúde mental que com certeza vão se agravar num contexto como esse: de um lado você tem o atendimento propriamente dito. Esse atendimento precisa ser ofertado e ele é uma realização individual do sujeito. A gente não diz a uma pessoa ‘vai para o psicólogo’ ou ‘você precisa ir’, ou alguma coisa. Se esse sofrimento chega ao nosso conhecimento a gente recomenda um apoio profissional. Se a pessoa aceita, ela é encaminhada para um determinado espaço. Do ponto de vista promocional e preventivo, aí a gente tem que pensar em espaços e comunidades. Você não tem uma estratégia. Acho que a meu ver a única estratégia que abarca de fato a comunidade como um todo é a vida política, saber que estamos resistindo, saber que estamos na luta ,saber que as pessoas estão escutando e que a universidade vive e a universidade não será tomada por pensamentos fascistas, expulsadores. Isso dá um certo alívio subjetivo.
Sobre a luta para mudar a vida a partir das articulações coletivas, Cássia fala mais sobre essa via dupla e enfatiza que há muita ancestralidade na frase sobre a luta política ser também uma via de cura, especialmente se pensarmos no passado escravocrata do Brasil. “Há um aprofundamento do sofrimento psíquico e mais ainda da individualização disso e da culpabilização das pessoas, ou seja nós temos uma estrutura excludente, exploratória, machista, sexista, racista, capacitista, nível de desemprego subindo, aumenta o dissenso nas famílias, aumenta o desmantelamento das famílias, e não estou falando de famílias heteronormativas e consanguíneas. Estou falando de famílias como estruturas estendidas de apoio social. Então, vai se capilarizando um tipo de dificuldade que mesmo que você coloque 20 psicólogos no exército para dar conta dessa escuta, não vai. Então, eu tenho sempre um pensamento de que essa é a questão da saúde mental é uma via de mão dupla. Ela é uma via que envolve saberes psi, mas ela envolve certa medida também, aqui eu trago o pensamento de Franz Fanon, a participação na vida política também como uma forma de saúde e de resistência não só a nossa militância oficial, não fazer parte de grupos oficiais, partidos, sindicatos, movimentos sociais. A participação social como o lugar do diálogo, do espaço em que você é importante, você pode falar, você se sentir vivo, se sentir presente, sente que tem outras pessoas que compartilham do mesmo pensamento que você. Nós temos que replicar cada vez mais esse tipo de pensamento para poder fazer frente a isso.”
Sobre os gastos da UFBA durante a suspenção das aulas presenciais
Muito se repercute nas redes sociais sobre os recursos das universidades públicas durante o ano de 2020, com a suspensão das aulas presenciais. Os questionamentos perpassam principalmente sobre a estrutura física e os recursos básicos como água, eletricidade, a suspensão de serviços como o Restaurante Universitário e o BUSUFBA, que realizava o transporte de discentes entre os campus de Salvador, questionando sobre aonde foram os recursos supostamente economizados durante a suspensão das aulas presenciais. Sobre isso, a Pró-Reitora responde. “É ,de fato, ilusória a ideia de que a universidade economizou porque ela está fechada, entre aspas, presencialmente. Porque é gente que é da comunidade sabe que a universidade tem um tripé ensino, pesquisa e extensão. Então, aquilo que não está direcionado para o presencial, está completamente alocado na pesquisa, que aumentou a demanda. Aumentou a demanda de tecnologia da informação, aumentou a demanda de questões de aprendizagem, capacitação da comunidade para enfrentamento desse momento e a nossa universidade tem uma característica particular, ela tem um grande parque de pesquisa e um grande parque de extensão. Portanto, aquilo que a gente não gastou, entre aspas, no presencial, a gente está investindo. Tem uma matéria no site da Andifes inclusive, se não me engano, até julho de 2020 as 69 universidades federais conduziram mais de 800 pesquisas sobre a COVID. Logo no primeiro momento da pandemia. Nós precisamos de fato dialogar com a sociedade que a ideia de que não tem ensino presencial o gasto é menor, não é. Se você pensar na assistência estudantil, os restaurantes estão fechados, mas nós prezamos os recursos dos contratos para pagar auxílio alimentação para os estudantes. A demanda de inclusão digital, que é uma demanda anterior à pandemia, porque a gente não tem política nacional de Inclusão Digital para a educação. As famílias não têm suporte, as famílias não têm estrutura em suas residências. Essa lógica de que tem que diminuir o orçamento da unidade está fechada e gastou menos, só mesmo na cabeça do pessoal do atual governo. Então acho muito interessante que você levante essa preocupação, que nos ajuda também a esclarecer em relação a isso”.
Mesmo com essa conjuntura citada pela pró-reitora, a escassez de vacinas, os inúmeros retrocessos, a mensagem final de Maciel é de muita luta e persistência pela universidade pública. “Estamos, sim, indignados, um pouco tristes porque a gente sabe que quando chegamos em casa sozinho, aperta um pouquinho, mas dispostos. Dispostos a lutar e dispostos a conversar. Nós nunca desistiremos da nossa universidade. Nós nunca desistiremos do nosso país e vocês, que se enquadram hoje no que a gente chama de juventude, são esperança de futuro e esperança de luz, esperança de resistência. Acho que uma unidade geracional, uma unidade de saberes acadêmicos, não acadêmicos juntos é que a gente vai poder conseguir fazer frente e resistir toda essa brutalidade que a gente está sendo submetido”, finaliza.
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