O recente caso envolvendo uma vaga de auxiliar de cozinha por R$ 1.800 na confeitaria da chef Isa Scherer reacendeu o debate sobre as condições de trabalho na gastronomia brasileira. O anúncio, que descrevia uma jornada das 14h às 22h, incluindo finais de semana, e exigia que o funcionário atuasse no preparo dos alimentos, limpeza e controle de estoque, foi duramente criticado nas redes sociais por representar uma possível sobrecarga de funções.
O Notícia Preta conversou com o advogado especialista em Direito do Trabalho, Danilo Oliveira Pontes, para entender o que a lei diz sobre situações como essa e onde estão os limites entre o que é legal e o que é ético nas relações de trabalho.
Segundo Danilo Pontes, o anúncio por si só não é necessariamente irregular, mas depende da compatibilidade das funções descritas com o cargo contratado. “O que define a legalidade é se as funções estão dentro daquilo que a convenção coletiva e o contrato permitem. Se o auxiliar de cozinha faz tarefas compatíveis com o cargo, como limpar o próprio posto de trabalho ou organizar insumos, isso é multifuncionalidade e é permitido”, explica. “Agora, se o trabalhador é cobrado a fazer, todos os dias, atividades de outros cargos, como limpeza geral da loja ou controle de estoque com responsabilidade de almoxarife, aí entra na esfera do acúmulo de função, e cabe pedido de diferença salarial.”
Após as críticas, Isa se pronunciou afirmando que a vaga era antiga, publicada no início do negócio, e que hoje a empresa possui uma estrutura diferente, com funções bem definidas e níveis salariais ajustados. A chef também disse que as remunerações foram sugeridas por uma consultoria jurídica e de RH, de acordo com as práticas de mercado.

Para o especialista, a diferença entre multifuncionalidade e acúmulo de funções é o que determina se há ou não irregularidade. “Multifuncionalidade é quando o trabalhador executa várias tarefas relacionadas à sua função. Já o acúmulo ocorre quando ele passa a exercer outra função de forma habitual e permanente, com responsabilidades diferentes e sem reajuste de salário. O limite entre um e outro é justamente a habitualidade e a incompatibilidade com o cargo. Quando isso acontece, a Justiça entende que o trabalhador tem direito à diferença de remuneração.”
A jornada das 14h às 22h, segundo o advogado, é válida desde que respeite o limite de 8 horas diárias, 44 semanais e o intervalo mínimo de 1 hora. “O descanso semanal precisa estar garantido, geralmente com pelo menos um domingo por mês, conforme a convenção da categoria. Trabalhar domingos e feriados é permitido, mas deve haver compensação ou pagamento dobrado”, explica.

Embora Isa Scherer tenha mencionado a contratação de consultorias de RH e jurídicas, Danilo ressalta que elas não eximem a responsabilidade do empregador. “Consultoria ajuda, mas não blinda. A responsabilidade final é sempre da empresa. É comum ver empregadores com parecer jurídico e, mesmo assim, condenados porque não aplicaram corretamente as orientações ou porque a prática real não bate com o papel.”
O advogado recomenda que profissionais em situação semelhante busquem informações sobre a convenção coletiva da categoria e documentem suas atividades. “O caminho mais seguro é pedir à empresa, por escrito, a descrição do cargo e guardar provas como mensagens, escalas e testemunhas. Se nada mudar, é possível procurar o sindicato ou um advogado para tentar conciliação ou ingressar com ação cobrando diferenças salariais e horas extras”, orienta.
A deputada Erika Hilton também se manifestou sobre o caso, afirmando que a vaga expôs uma realidade estrutural de precarização no setor gastronômico, inclusive em restaurantes de alto padrão. “É uma constatação bem real”, comenta Danilo. “No setor de alimentação é muito comum ver sobrecarga, acúmulo de funções e informalidade. A lei é clara, mas a execução muitas vezes é precária, o que gera um volume alto de ações trabalhistas. E isso não acontece só em pequenos negócios, mas também em casas de alto padrão.”
Para o especialista, o problema não é a existência de trabalhos multifuncionais, mas a falta de limite e compensação justa. “O que garante o equilíbrio é o respeito à convenção coletiva, à carga horária e à clareza do contrato. Quando há transparência e remuneração compatível, a relação de trabalho se mantém saudável.”
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