A partir de 26 de junho será possível conhecer o pensamento da antropóloga, historiadora e filósofa brasileira Lélia Gonzalez (1935 – 1994). O Sesc São Paulo, em parceria com a Boitempo, inaugura o projeto Lélia em nós: festas populares e amefricanidade, na unidade Vila Mariana. A exposição, com entrada gratuita que fica em cartaz até 24 de novembro de 2024, foi inspirada pelo livro Festas populares no Brasil.
O livro promove uma celebração da cultura afro-brasileira – ou amefricana, como propõe a autora – a partir de um recorte que estabelece diálogos e reflexões suscitados pela produção intelectual de Gonzalez, uma proeminente ativista do movimento negro brasileiro e importante teórica do feminismo negro, cuja morte completará 30 anos em 10 de julho de 2024.
Com uma seleção de produções contemporâneas e de diferentes períodos, reunida em cinco eixos temáticos, Lélia em nós: festas populares e amefricanidade apresenta pinturas, fotografias, documentos históricos, objetos, performances, instalações e vídeos de artistas como Alberto Pitta, Heitor dos Prazeres, Januário Garcia, Maria Auxiliadora, Nelson Sargento, e Walter Firmo, além de 12 trabalhos inéditos, de artistas como Coletivo Lentes Malungas, Eneida Sanches, Lidia Lisboa, Lita Cerqueira, Manuela Navas, Maurício Pazz, Rafael Galante e Rainha Favelada.
A mostra também apresenta um recorte de sonoridades e musicalidades, tanto do universo das festas e festejos brasileiros quanto das intervenções do DJ Machintown e do trombonista Allan Abbadia, além de registros fonográficos da discoteca pessoal de Lélia. Parte do acervo do Instituto Memorial Lélia Gonzalez (IMELG), a coleção reúne álbuns de artistas como Wilson Moreira e Nei Lopes, Luiz Gonzaga, Tamba Trio, Clementina de Jesus, Jamelão e Lazzo Matumbi
Partindo de conceitos teóricos desenvolvidos por Lélia Gonzalez, como a categoria político-cultural de amefricanidade – termo cunhado pela acadêmica em contraposição à ideia hegemônica de afro-americanidade para, segundo ela, “ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico” e redimensionar a influência da diáspora atlântica para a formação das Américas do Sul, Central, do Norte e Insular –, a mostra convida o público à compreensão dopotencial da cultura popular afro-brasileira como tecnologia de identidade e resistência.
Com curadoria de Glaucea Britto e Raquel Barreto, a exposição foi inspirada pelas proposições feitas por Lélia Gonzalez em Festas populares no Brasil. Único título publicado em vida pela intelectual exclusivamente como autora, o livro foi publicado originalmente em 1987. A obra não foi oficialmente lançada no mercado, tendo sido patrocinada por uma empresa multinacional e distribuída como presente de fim de ano. No mês de abertura da exposição, a publicação ganhará nova edição da Boitempo, a primeira voltada à circulação no mercado editorial. Com textos da acadêmica que evidenciam laços indissociáveis entre Brasil e África por meio de manifestações populares como o Carnaval, o Bumba-Meu-Boi, as Cavalhadas e festas afro-brasileiras como as Congadas e o Maracatu, a obra reúne mais de cem imagens de cinco fotógrafos: Leila Jinkings, Marcel Gautherot, Maureen Bisilliat, Januário Garcia e Walter Firmo (os dois últimos, integrando a exposição). A nova edição inclui também materiais inéditos, textos de apoio, fac-símiles, prólogo de Leci Brandão, prefácio de Raquel Marreto, posfácio de Leda Maria Martins, texto de orelha de Sueli Carneiro e quarta capa de Angela Davis e Zezé Motta.
ARTISTAS E EIXOS TEMÁTICOS
Reunindo obras de acervos pessoais, públicos e institucionais, além dos 12 trabalhos inéditos, a exposição Lélia em nós: festas populares e amefricanidade desenvolve-se a partir dos cinco eixos temáticos listados a seguir:
1) Festas populares: o livro
Espaço expositivo que reafirma Lélia Gonzalez como uma intérprete do Brasil por meio de excertos textuais de Festas populares no Brasil e reproduções fac-similares de artigos publicados na imprensa e documentos históricos, como os extraídos do pioneiro curso Cultura Negra, ministrado pela intelectual em 1976, na EAV – Escola de Artes Visuais do Parque Laje (RJ). Nesse mesmo núcleo também estão presentes obras de, entre outros, Ivan da Silva Morais, Simba, José Luiz Soares e Kevin da Silva, além de fotografias de Walter Firmo e Adenor Godim.
2) Racismo e sexismo na cultura brasileira. Cumé que a gente fica?
Nesse eixo temático, cinco artistas, mulheres negras, são convidadas para, por meio de obras inéditas, darem uma expressão artística visual ao texto mais icônico e significativo de Lélia Gonzalez, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, ensaio publicado em 1984 na Revista Ciências Sociais Hoje. Com essa intervenção, Lidia Lisboa, Eneida Sanchez, Manuela Navas, Hariel Revignet e Rainha Favelada realizam uma interpretação contemporânea e vibrante da mensagem atemporal de Lélia, enquanto também homenageiam sua influência e legado.
3) Pele Negra, máscaras negras
O título desse núcleo dialoga com um dos livros mais importantes e influentes para a ascensão dos movimentos da luta antirracista, Pele negra, máscaras brancas, publicado em 1952 pelo psiquiatra martiniquense Frantz Fanon, um autor fundamental para o pensamento de Lélia e a construção de perspectivas para as reflexões sobre os efeitos subjetivos do racismo na gênese do indivíduo. Na proposta das curadoras, esse eixo temático é uma celebração à presença das máscaras e dos mascarados em inúmeras festas populares do Brasil, estabelecendo uma relação ancestral com as máscaras da cultura africana em festividades e rituais. O núcleo reúne: fotografias de Carlos Humberto TDC, Jandir Gonçalves, Ismael Silva e Márcio Vasconcelos; obras de Simba, Bea Machado, Uberê Guelê; e uma instalação e performance comissionadas de Guinho Nascimento.
4) Beleza Negra, ou: ora-yê-yê-ô
Nesse eixo, a exposição evidencia a beleza e a dimensão política de afoxés, cortejos conduzidos por reis e rainhas – como Badauê, Filhas d’Oxum, Korin Efan, Ataojá, Ilê Oyá, Monte Negro e Filhas de Ghandy – que agregam multidões e que possuem estreita relação de origem com os terreiros de candomblé de Salvador. No espaço expositivo estão reunidos: objetos pessoais de Lélia; fotografias de Januário Garcia, Antônio Terra, Bauer Sá, Lita Cerqueira, Bruno Jungmann, Arquivo Zumvi (Lazaro Roberto e Jonatas) e Mônica Cardim; obras de J Cunha, Alberto Pitta, Maria Auxiliadora e Isa do Rosário de Maria; e trabalhos comissionados de Nádia Taquary e do Coletivo Lentes Malungas.
5) De Palmares às escolas de samba, tamo aí!
Exaltando o papel das mulheres negras como perpetuadoras dos valores culturais afro-brasileiros, o núcleo estrutura-se a partir da consideração de Lélia de que Palmares forjou uma nacionalidade brasileira baseada na igualdade. Nesse sentido, a contribuição das mulheres negras estaria presente desde a criação de Palmares, passando por todas as experiências socioculturais do povo brasileiro, com destaque para a experiência na criação de instituições negras, como as escolas de samba, e de instituições religiosas, como os terreiros de candomblé. No espaço expositivo estão reunidas: fotografias de Eustáquio Neves, Letícia Mercier, Januário Garcia, Walter Firmo e Lita Cerqueira; e pinturas de Sergio Vidal, Raquel Trindade, Heitor dos Prazeres, Maria Auxiliadora, Nelson Sargento, Wallace Pato, Mulambö e Bea Machado. O núcleo reúne ainda Escolas de Samba de São Paulo, vídeo de Rafael Galante e Maurício Pazz, comissionado para a exposição.
SOBRE LÉLIA GONZALEZ
Lélia Gonzalez (1935-1994) foi uma das mais importantes intelectuais brasileiras do século 20. É uma referência nos estudos e debates de gênero, raça e classe no Brasil, na América Latina e pelo mundo, sendo considerada uma das principais autoras do feminismo negro no país. Foi cofundadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro (IPCN-RJ) e do Movimento Negro Unificado (MNU). Autora de Festas populares no Brasil (Boitempo, 2024), coautora de Lugar do Negro (1982), livro escrito com o sociólogo Carlos Hasenbalg, e de artigos de grande relevância sociopolítica para a disseminação do debate acadêmico sobre as intersecções entre raça e gênero, como “A importância da organização de mulheres negras no processo de transformação Social” (1980), “Racismo e sexismo na sociedade brasileira” (1984) e “Por um feminismo afrolatinoamericano”(1988).
Leia também: Ogan Bangbala, conhecido como o mais antigo em atividade no Brasil, é homenageado em documentário e exposição