Na última quarta-feira (22), o governo de São Paulo anunciou novas diretrizes para o uso de câmeras corporais pela Polícia Militar, permitindo que os policiais decidam quando ativar ou desativar os dispositivos durante o serviço. A mudança, criticada por especialistas e autoridades, foi chamada de “retrocesso” pelo ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida.
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“Esse é mais um retrocesso inominável, verdadeiro teatro”, disse o ministro, que acredita que a medida beneficiará policiais que desrespeitam a lei. O ministro Silvio Almeida destacou que se os policiais puderem desligar as câmeras à vontade, o uso das mesmas não terá efeito prático algum.
“Ora, se de um lado há policiais que vão ligar e há outros que vão desligar a câmera, onde está o critério de preservação das vidas envolvidas em ações policiais? Me parece que o governo de SP ignora o fato de que a câmera também serve para proteção da vida dos policiais”, destacou.
O novo edital prevê a aquisição de 12 mil câmeras, que diferem do modelo atual por permitir que os policiais escolham quando gravar. Embora o acionamento das câmeras seja obrigatório, a decisão de ativar ou não ficará a cargo dos agentes.
Organizações da sociedade civil também expressaram preocupação com as mudanças. Em nota conjunta, várias entidades ligadas à segurança pública afirmaram que a gravação contínua das câmeras tem sido essencial para reduzir a letalidade policial e o uso excessivo da força.
A nota foi assinada por várias entidades, incluindo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV), o Instituto Sou da Paz, o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), a Iniciativa Negra, o Fogo Cruzado, a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, o Instituto Igarapé, o Instituto Mundo Aflora, o Instituto Vladimir Herzog, a Conectas, a Comissão Arns, a Plataforma Brasileira de Política de Drogas, a Justa, as Mães de Maio, o Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo e o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.
“Ao extinguir a funcionalidade de gravação ininterrupta, a PM deixa a cargo dos próprios policiais a escolha sobre o acionamento das câmeras, o que pode diminuir os efeitos positivos do programa. Diferentes estudos realizados no Brasil e no exterior indicam que, em média, os policiais não acionam a câmera corporal em 70% das ocorrências atendidas”, informaram as entidades, em nota.
Atualmente, há mais de 10 mil câmeras em operação no estado, que registram tanto vídeos de rotina quanto vídeos intencionais. As gravações de rotina são ininterruptas e armazenadas por 90 dias, enquanto as gravações intencionais, ativadas manualmente pelos policiais, são armazenadas por um ano. No novo edital, não há menção às gravações rotineiras, apenas às intencionais, que também poderão ser acionadas remotamente pelo Centro de Operações da Polícia Militar (Copom).
As novas câmeras terão funcionalidades avançadas, incluindo transmissão ao vivo e gravação retroativa de 90 segundos. O governador Tarcísio de Freitas defendeu a mudança, afirmando que o acionamento remoto garantirá maior controle sobre as gravações, permitindo uma fiscalização mais rigorosa do trabalho policial.
“Você tem a possibilidade de retroagir no tempo [nas novas câmeras]. Então, se houver um estampido, o Copom pode acionar a câmera com o tempo retroativo. Você tem uma governança muito melhor do que vai ser gravado, tem um compliance maior. Você sai daquela situação de ir para uma operação, acabar a bateria, e a câmera não filmar. Então, você vai passar a ter uma governança muito melhor, uma qualidade de imagem muito maior e um controle muito melhor das operações que vão estar em campo”, afirmou Tarcísio.
No entanto, as entidades criticaram a redução nos requisitos para participação da licitação, que agora exige que as empresas comprovem capacidade de fornecimento de apenas 500 câmeras, comparado aos 50% exigidos em editais anteriores. Elas alertam que essa mudança pode comprometer a qualidade dos equipamentos fornecidos.
O governo espera que a licitação resulte em uma economia significativa para o estado, reduzindo o custo unitário das câmeras pela metade. No entanto, a redução nos investimentos e nas exigências de capacidade técnica levanta dúvidas sobre a eficácia e a continuidade do Programa Olho Vivo, que tem sido elogiado por reduzir a violência policial.
Casos recentes
Em junho de 2023, um homem em situação de rua relatou que policiais militares de São Paulo desligaram suas câmeras e o agrediram antes de religarem os dispositivos. Ele foi preso sob acusação de furto, após ser flagrado com duas caixas de bombons em um supermercado. A Polícia Militar negou a possibilidade de desligamento das câmeras, afirmando que os dispositivos funcionam de forma ininterrupta. O caso foi investigado pela corregedoria, e os policiais envolvidos foram afastados.
As imagens da ação, gravadas por uma pessoa na UPA da Vila Mariana, ganharam destaque nas redes sociais, com diversas denúncias, incluindo a do Padre Júlio Lancellotti. O padre questionou o tratamento dado ao homem, que estava desarmado e em situação de rua, lembrando a abolição da escravidão.
Outro caso que aconteceu em maio de 2021 e que ilustra a problemática do uso de câmeras corporais ocorreu no Capão Redondo, zona sul de São Paulo. As câmeras nas fardas dos soldados André Luiz Ferreira de Santana e David Rodrigo Ribeiro estavam desligadas quando o jovem Vitor Gomes Cleace, 21, morreu após perder o controle de sua moto.
Segundo relatos, ele foi atingido por um cassetete jogado pelo soldado André enquanto dirigia. A informação consta em um ofício assinado pela tenente-coronel Daniela Polete Costa Pereira Merlin, comandante do 37º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), datado de 30 de junho.
O delegado Antonio Carlos Renno Miranda, do 47º DP (Capão Redondo), havia solicitado as imagens das câmeras e a apresentação do cassetete usado pelo policial. Em resposta, a tenente-coronel informou que os policiais não estavam gravando no momento do incidente. O modelo das câmeras em teste pelo 37º BPM/M era diferente das adquiridas recentemente pelo governo paulista, que são do Consórcio Axon Advanta e possuem gravação ininterrupta por turno de 12 horas.
Imagens de câmeras de segurança de um mercado mostraram o momento em que o soldado André Luiz Ferreira de Santana joga um cassetete em direção à moto de Vitor, que perde o controle e bate em um poste. A morte de Vitor gerou protestos no bairro, com a comunidade exigindo justiça. A Polícia Militar afirmou que os policiais envolvidos foram transferidos de batalhão e que o caso está sendo investigado.
O Ministério Público e a Justiça, no entanto, decidiram que os policiais não assumiram o risco de provocar a morte de Vitor ao jogar o cassetete. O promotor Thomas Mohyico Yabiku e o juiz Marcus Alexandre Manhães Bastos entenderam que a intenção do soldado era atingir a moto, não o piloto, e determinaram a redistribuição do caso a outra vara criminal, excluindo a competência do Tribunal do Júri.
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