A atriz, diretora e dramaturga Mirella Façanha estreia no cinema com o longa-metragem “Cidade; Campo”, da produtora Alice Wolfenson e da diretora Juliana Rojas, que participa da Berlinale Encounter, mostra competitiva do Festival de Berlim, onde o filme terá sua primeira sessão pública no dia 19 de fevereiro.
O convite para participar do seu primeiro filme veio durante a pandemia, em meio à toda vivência daquela época densa, cheia de incertezas. “Por estar muito engajada na minha trajetória dentro de teatro, como artista independente, com um trabalho autoral no qual eu acreditava muito, somado ao fato de que todos os convites que eu havia recebido para trabalhar no audiovisual eram convites para personagens extremamente subalternizadas e estereotipadas dentro da rasa análise em que o mercado tinha em relação ao meu fenótipo, eu definitivamente não era uma pessoa fácil de entrar em contato”, relembra
Ela explica ainda que, antes do teste, já estava completamente apaixonada pelo roteiro e pela delicadeza da Juliana propor uma reunião antes de filmar o teste para que ela pudesse tirar qualquer dúvida sobre a personagem.
“Quando olhei pra tela do computador e vi que eu estava pela primeira vez em uma reunião onde éramos três mulheres gordas, eu me emocionei…”, relembra Mirella, diretora e roteirista do documentário “Noiz é sempre um ruído”, onde registra o processo de desmontagem do grupo de teatro “E Quem É, Gosta?”, do qual foi uma das fundadoras.
A espera para estar nas telas valeu a pena. Mirella Façanha se lança no audiovisual num produto cuja trajetória já começa em grande estilo, com direito à presença em um tapete vermelho na Europa. “É a minha estreia no cinema, num longa-metragem, numa première, e me sinto tão sortuda por ter sido como foi. Naquele momento [das gravações] eu era uma Mirella muito diferente, ainda estava muito assustada com a vida porque tinha passado por um período de adoecimento muito grave. Então, poder estrear ao lado de Juliana Rojas foi um dos grandes presentes que a vida me deu”, resume Mirella.
Embora tenha cursado Artes Cênicas na Universidade de Brasília, se formou na Escola de Arte Dramática – EAD/ECA/USP e, na trama de “Cidade; Campo”, ela dá vida à Flávia, uma pessoa intensa e muito observadora, de poucas palavras e muitas emoções represadas no peito.
“A Flávia, minha personagem no filme, está de luto. Aparentemente introspectiva, é um vulcão coberto de neve. Ela perdeu o pai e, junto de Mara, sua companheira, decidiu se mudar para a casa que herdou dele em uma zona rural no Mato Grosso do Sul. Anestesiada pelo luto e por estar distante do seu pai no momento em que ele morreu, somado ao cansaço de seu cotidiano vivendo em São Paulo, a decisão de abandonar a vida no centro urbano é uma tentativa de se reaproximar dele e dar uma chance para um estilo de vida que faça mais sentido para ela e para Mara”, explica.
“As dificuldades de adaptação àquela nova realidade, tão próxima da natureza e de seus mistérios, vão invadindo a vida do casal, e nada tem mais importância para Flávia do que seguir sua intuição e conseguir achar o caminho para tudo aquilo que ela está sentindo, escutando e vendo – mesmo com medo”, completa.
Contando histórias de migração entre o meio urbano e o rural e com uma equipe formada majoritariamente por mulheres, o filme rodado na cidade de São Paulo e na zona rural do Mato Grosso do Sul, concorre em Berlim aos prêmios de Melhor Filme, Melhor Direção e Prêmio Especial do Júri. Para suas cenas mais intensas – físicas e emocionalmente – Mirella construiu um gráfico de intensidades para conseguir fazer transições sutis que fizessem sentido dentro das reações de Flávia.
“Sou fascinada em como nosso corpo é capaz de nos transformar e nos levar a estados de emoção muito intensos. Pra mim é como a dança, só que uma dança dimerizada para o trabalho com a câmera. É um trabalho de construção bem objetivo e físico. Também acho importante povoar a mente com o que nos inspira”, analisa.
“A câmera é capaz de captar emoções dentro da gente, e acredito que para o trabalho de atuação precisamos estar recheados. Especificamente com a câmera, acredito que o relaxamento é importante para que os olhos possam ser passagem e um convite para nosso recheio. Esse foi um processo meu de preparação e construção que se somaram aos ensaios, direções, conversas, trocas de referências e proposições da Juliana”, relembra a atriz, que seja fazer mais cinema.
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Ensaiar e filmar em meio à pandemia foi um processo desafiador para a Mirella, que é portadora de esclerose múltipla. Atualmente com sua condição de saúde controlada, a atriz é só alegria. “Se eu falar que não me imaginava no lugar em que estou hoje, estaria mentindo. Realizar sonhos é muito mais gostoso do que só tê-los dentro da cabeça. Estou muito feliz, o Festival de Berlim é um dos maiores do mundo, e estrear o filme lá é um prêmio por si só”, celebra.
“Para quem não me conhece pode parecer uma grande sorte, mas são muitos anos de trabalho, muito profissionalismo e excelência naquilo que faço. Hoje estou com saúde, estou feliz com quem eu sou, começando o ano estreando um trabalho importante pra mim, sendo generosa comigo, investindo em mim e no que acredito. Me sinto amada e acolhida, amo profundamente e não saio me perdendo dentro das pessoas, não deixo ninguém fazer bagunça aqui dentro e acho que uma das maiores conquistas – não permito mais que ninguém me defina”, finaliza Mirella Façanha.