“Serviço público de saúde reproduz racismo”, afirma presidente da Associação de Medicina de Família e Comunidade do Rio de Janeiro

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Em menos de um mês, dois menores morreram por não conseguirem atendimento de emergência na rede pública no Rio de Janeiro. Mesmo diagnosticado com tuberculose em uma unidade municipal de saúde, um adolescente de 16 anos foi orientado a voltar para casa e acabou morrendo. Dias depois, uma recém-nascida de apenas 21 dias também não resistiu, depois de esperar atendimento por 11 horas também em hospital do município do Rio.

As duas vítimas eram negras. As mortes ilustram o cenário do racismo estrutural na área da saúde. Para a médica Rita Helena Borret, presidente da Associação de Medicina de Família e Comunidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e integrante do coletivo Negrex-RJ, o serviço público de saúde hoje se apresenta como uma instituição que reproduz o racismo: “Em maio de 2009, foi lançada a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, com objetivo de reduzir iniquidades que foram levantadas. Apesar do grande avanço com a publicação dessa política, a mesma ainda enfrenta inúmeras dificuldades para ser colocada em prática nos serviços de saúde.”

A tuberculose, que vitimou o adolescente de 16 anos, é uma das doenças mais comuns entre negros. Também estão nesse grupo de enfermidades, doenças como anemia falciforme, hanseníase, diabetes, hipertensão arterial e deficiência em Glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD).

Por que essas doenças atingem mais os negros?
Rita Helena Borret: A anemia falciforme e a deficiência de G6PD são mais comuns entre negros pela especificidade de alguns genes que estavam mais presentes na população negra, advinda de África. Mas as questões genéticas têm relevância menor quando a temática é raça. A principal causa de adoecimento, que precipita doenças na população negra é a construção histórico-social racista do nosso país, que subjuga a população negra e lhe nega direitos desde o período escravocrata colonial. Essa falta de direitos, surge como importante determinante social no processo de adoecimento, uma vez que molda (a falta de) acesso e experiências de viver em uma sociedade racista.

Há alguma forma de prevenção ou de fácil diagnóstico?
Rita Helena Borret: Investigação diagnóstica de anemia falciforme já faz parte do rastreio neonatal existente no SUS. A deficiência de G6PD ainda não. A principal forma de prevenção do adoecimento está no combate ao racismo estrutural e institucional na nossa sociedade. Reduzir iniquidades em saúde e desigualdades ao nascer, crescer, viver e morrer no país, como diz Fernanda Lopez.

Como esses profissionais são formados nos cursos de Medicina para ter esse olhar em direção à população negra?Rita Helena Borret: Em relação à formação profissional, desde 2014, as diretrizes curriculares nacionais de Medicina incluíram a abordagem de relações étnico-raciais como tema transversal a todo o currículo. No entanto, o tema ainda não é abordado em quase nenhuma instituição de formação em medicina. O mesmo também ocorre com outras formações em saúde.

Na sua opinião, por que muitos negros ainda desconhecem sobre essas doenças?
Rita Helena Borret: A população negra foi ensinada que o racismo não existe e que no Brasil vivemos a democracia racial. Não é verdade. Todos sabemos e sofremos com o racismo em nosso cotidiano, mas, às vezes, é difícil nomear as situações que vivemos como racismo uma vez que estamos sempre sendo convidados a pensar que possa ser qualquer outro o motivo. O negro no Brasil, desde muito cedo, aprende que precisa ser mais forte e melhor que os demais para ter uma chance de se firmar ou sobressair. A mulher negra cresce muitas vezes pensando que a sociedade reserva pra ela as opções de ser a mulata do carnaval ou a empregada doméstica, que são os estereótipos apresentados na televisão. A mulher negra é sempre forte, lida bem com a dor, cuida de todos e reclama pouco. Era assim que precisava ser na época escravocrata, e essa construção social mudou pouco até os dias de hoje.

Como mudar esse quadro?Rita Helena Borret: Para a população negra, perceber-se negro muitas vezes é difícil. É perceber-se como socialmente inferior e à margem da população. É saber-se não parte do padrão socialmente estabelecido é isso é, por vezes, adoecedor. O racismo internalizado é uma questão importante que a saúde pública precisa estar atenta para ajudar a combater. Os índices de suicídio, que é 45% maior entre jovens negros está aí, recentemente lançado pelo Ministério da Saúde, para mostrar que, enquanto profissionais de saúde e enquanto sociedade, precisamos agir energicamente no combate ao racismo.

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