Quilombo Kalunga luta para conter o avanço da covid-19

Hegon-Correa-Governo-de-Goias.jpeg

Comunidades quilombolas de Goiás recebem as primeiras doses da vacina, mas o impacto da pandemia, junto a manutenção do racismo, ameaça o acesso ao mínimo para sobrevivência

Foto: Daniel Ferreira / Metropolis

Após reivindicação, o maior território quilombola do Brasil iniciou, no dia 6 de março, a vacinação contra a covid-19. Na fase inicial do Plano Nacional de Imunização, o Ministério da Saúde tinha excluído essa população dos grupos prioritários, uma decisão que foi revertida mediante a pressão de representantes quilombolas.

O Programa nacional de operacionalização da vacinação contra a covid-19, estima, a partir dos dados do Censo do IBGE 2010 e as áreas mapeadas em 2020, a vacinação de 1.133.106 pessoas dos povos e comunidades tradicionais Quilombolas, acima de 18 anos.

Ainda com casos subnotificados pelas secretarias municipais de saúde, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (Conaq) junto ao Instituto Socioambiental (ISA), trabalham em conjunto com as associações para contabilizar números de óbitos e infectados pelo Brasil e lançaram o Observatório da Covid-19 nos Quilombos. A partir disso, o boletim epidemiológico registrou, até o momento, em território nacional, mais de 5 mil casos confirmados e 221 óbitos.

“Quando a gente teve as primeiras notícias dos casos no Brasil e a gente, como uma comunidade que recebe pessoas de todo o mundo praticamente, nossa primeira ação foi de imediato fechamento do turismo, porque o pânico estava no rosto de cada um, de todos” conta Dominga Rosa, secretária da Associação Quilombo Kalunga, ao revelar a forte estratégia dos Quilombos para barrar o avanço das mortes.

A chance de uma pessoa pertencente à população quilombola morrer por covid-19 é quatro vezes maior do que uma pessoa da comunidade branca e urbana, segundo Hilton Silva, membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). A taxa de letalidade entre essa população é de 11,09%, mais que o dobro da média nacional, que está em 4,9%.

E, ainda, ao sobrepor dados do IBGE, as localidades quilombolas e os dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (DataSUS), a Conaq verificou que dentre os 1.672 municípios com localidades quilombolas, 46 não possuem nenhum médico do SUS, 67 possuíam apenas um médico e 619 localidades entre 2 e 10 médicos do SUS. Em 745 municípios (44%), há um médico do SUS para mais de 1.000 habitantes, 1.485 (89%) localidades não possuem leitos de UTI e 948 municípios não possuem respiradores no SUS.

Vale lembrar que não existe nenhuma secretaria especializada na saúde do povo negro e, muito menos do povo quilombola, como se tem, por exemplo, para os povos indigenas com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). A luta histórica para se estabelecer cidadania e direitos, encontra no racismo a sua sistematização face ao descaso do governo, ao desconsiderar as vidas de mais de 16 milhões de pessoas nas mais de 6 mil localidades quilombolas, de acordo com a Conaq. “Independente de pandemia, a gente sempre resistiu a vários obstáculos”, reitera Dominga.

Imunização no Quilombo Kalunga

O maior território de afrodescendentes quilombolas do país tem mais de 300 anos de existência e fez história na última eleição ao eleger o primeiro quilombola prefeito do país, Vilmar Kalunga. É um território composto por cerca de 10 mil pessoas distribuídas em 39 comunidades situadas nas cidades de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, uma área quase duas vezes a do Distrito Federal, todas no noroeste do Estado de Goiás, na região da Chapada dos Veadeiros. Com uma área extensa e muitas moradias remotas, que só chegam com carro adequado, executar a vacinação pode ser um desafio para os profissionais.

A Associação Quilombo Kalunga (AQK) comunicou o início da vacinação no começo de março, após o anúncio de 14 contaminados no território e o pedido de testagem em massa diante desse acontecimento. Segundo o governo do Estado de Goiás, foram disponibilizadas 5.251 doses para o povo Kalunga, que deveriam ser vacinados com a primeira dose até o dia 15 de março. Mas até o momento, conforme as últimas notificações da prefeitura de Cavalcante, apenas cerca de 570 pessoas foram vacinadas, das 2.252 doses da CoronaVac enviadas nesse primeiro momento. “Todos os adultos a partir de 18 anos estão sendo vacinados. Esta semana foram iniciados os testes nas comunidades do Vão de Almas e de Monte Alegre, onde houve casos confirmados, para definir o calendário de vacinação para os moradores dessas regiões”, diz a associação.

Foto: Hegon Correa/Governo de Goiás.

“A vacinação está sendo efetuada, juntamente com a secretaria de saúde e com os agentes de saúde comunitários, que vão de casa em casa efetivando essa vacinação. Também em algumas comunidades tem a ajuda de alguns voluntários ajudando na cozinha, pegando dados, nessa ajuda”, diz Dominga Rosa.

A secretaria, no entanto, também relata sobre o recebimento de várias denúncias da população a respeito da falta de diálogo de alguns profissionais da saúde – que não conhecem a dinâmica do território e não sabe quem faz parte ou não da comunidade – para com os quilombolas e a associação. Especialmente, sobre a falta de divulgação de informação sobre quem pode vacinar ou não e porquê, e de como será o procedimento para quem é cônjuge, mas mora na cidade. 

O presidente da Associação, Jorge Moreira, ainda conta que recebeu vários questionamentos da população sobre os critérios do governo, que impedem que quilombolas não cadastrados e/ou que vivem nas cidades próximas possam ser imunizados.

Fonte de renda, Ecoturismo se mantém fechado 

Domingas Rosa ressalta que, antes da pandemia, o Quilombo em geral, estava trabalhando em virtude do desenvolvimento sustentável e também da implantação do turismo em todas as comunidades de turismo. “Recebiamos pessoas de todos os lados do Brasil, o ano inteiro, e a gente viu isso como uma fonte de renda muito boa. O turismo veio a ser uma grande fonte de renda, uma grande esperança também para as comunidades, como uma forma de renda e ao mesmo tempo de valorização daquilo que está preservado”, pontua.

Titulação

No início de março, o Programa Ambiental da ONU (UNEP-WCMC) reconheceu o Quilombo Kalunga, que é um Sítio Histórico e patrimônio cultural, como o primeiro TICCA (Territórios e Áreas Conservadas por Comunidades Indígenas e Locais) do Brasil. O título é destinado a espaços em que a população vive, preserva e estabelece uma relação cultural com a terra e exerce a  ideia de “territórios de vida”. Um reconhecimento que contribui para pressionar as autoridades nacionais a respeito da importância da preservação do local e das pessoas que ali vivem.

Foto: Acervo Associação Quilombo Kalunga

Com o decreto municipal e estadual de contenção do vírus, mas também com a finalidade de autocuidado da população, o Quilombo se encontra fechado – há quase um ano, com uma pouca flexibilidade em janeiro – para turistas e pesquisadores. O isolamento foi a grande barreira para que o vírus não se alastrasse pelo território, já que para atendimento básico de saúde precisam recorrer a Brasília – mais de 300 km de distância – ou a Goiânia – mais de 500 km. “Então a gente sabe que na questão de saúde, a gente não tem tanto acesso aos meios de saúde, a não ser mesmo contar com nossos conhecimentos tradicionais, com as plantas do Cerrado”, relata Dominga.

Além disso, com o término do auxílio emergencial, a situação se agravou. “Esse momento agora, os Kalungas estão começando a passar por grandes necessidades, a coisa apertou para todos, não só para os Kalunga, mas os Kalunga é uma das populações que está sofrendo muito os efeitos negativos dessa pandemia. Está faltando alimentos, a questão financeira também, já estão com dificuldades de pagar conta de luz. Já estão com dificuldade, às vezes quem tem, de pagar internet. Porque já não tem de onde tirar uma renda”, explica Jorge Moreira.

A insegurança do território é uma constante em todo o Brasil

A reivindicação pela regularização da terra é outro fator que pesa nas preocupações durante a pandemia. Somente 9% do total das terras de comunidades quilombolas reconhecidas estão regularizadas. Com o atual governo, o orçamento destinado aos quilombolas foi o menor em uma década, só em 2020 foi investido menos de R$ 3 milhões. 

Tal valor não se compara aos R$15 milhões que o governo federal gastou com leite condensado, segundo o levantamento do (M)Dados, núcleo de jornalismo de dados do Metrópoles, com base do Painel de Compras atualizado pelo Ministério da Economia. Ou ao gasto de R$ 1,2 trilhão em recursos para bancos, só em 2020. Ou aos US$ 79,1 milhões de dólares, cerca de R$ 439,88 milhões de reais, com importação de armas e munições, segundo dados do Sistemas de Comércio Exterior (Siscomex).

“É um governo antiquilombola, anti-indigena, anti populações tradicionais e populações historicamente violadas no campo brasileiro. Então, é um governo que apresenta inúmeras características de um governo racista”, diz Maíra Moreira, assessora jurídica do Terra de Direitos em entrevista, à Rede TVT.

O território Kalunga, ainda não conquistou sua plena regularização fundiária, a morosidade desse feito por parte das autoridades se amplia com a pandemia. Atualmente, apenas 8,5% da área é regularizada, são 22.489,8492 hectares diante do total de 261.999,6987 hectares. O restante da área é de uso fornecido parcialmente pela Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU), o que não configura direito de propriedade, somente o uso da área pela comunidade enquanto o título definitivo não é outorgado. Ter o título definitivo da terra, que passa a ser coletiva, é sinônimo de segurança de onde viver e de uso da terra sem o receio de a qualquer momento sofrer com despejo. “A gente trabalha para construir esse Brasil durante o ano inteiro. Então, a gente tem que acabar com esse racismo institucional que existe dentro das estruturas governamentais”, ressalta Biko Rodrigues, coordenador executivo da Conaq.

Vidas Quilombolas Importam! 

Mesmo com menção na Constituição de 1988, somente neste ano, a população quilombola entrará para o censo do IBGE. Esse apagamento da existência entico-racial desse povo é reforçado em sua exclusão do Plano Plurianual (PPA) 2020-2023 do governo Federal, que deveria estabelecer políticas públicas específicas para os Quilombolas. “Os nossos antepassados não eram originários do Brasil ou imigrantes, vieram para cá contra a vontade, acorrentados, sequestrados de África. Os Quilombos nasceram como refúgios, primeiro contra a violência da escravidão. Os Quilombos do Brasil ajudam a preservar o meio ambiente, a medicina tradicional, a cultura do nosso povo e a biodiversidade brasileira”, diz Selma Dealdina, secretária da Conaq.

Protocolada em setembro de 2020, depois de várias tentativas de diálogo, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742 versa sobre parâmetros para amenizar os impactos da pandemia e do processo histórico racista para com as comunidades quilombolas. Tais medidas emergenciais vão de encontro à falta de políticas públicas, à assistência médica e sanitária, à falta de transporte de qualidade, política de alimentação adequada, ao saneamento básico, à água potável, energia, linha de telefone, internet, ao registro dos casos de covid-19 em relação ao quesito raça/cor/etnia, entre outras muitas omissões do governo federal. Além de proteção contra despejos, ameaças e violência frente aos conflitos por terra.

Foto: Walisson Braga.

“A ADPF, proposta pela Conaq, foi justamente para isso, cessar essas omissões ou ações do governo mediante a não estabelecimento de um plano de combate aos efeitos da pandemia dentro dos territórios quilombolas, que ficou totalmente sem assistência, diante de um contexto que se encontra completamente vulnerabilizados”, explica Vercilene Dias, Quilombola Kalunga, uma das advogadas que assinam a petição, assessora jurídica do Terra de Direitos. 

Pela primeira vez durante a pandemia, o poder público se volta para a necessidade de conter os impactos da covid-19 na população quilombola. No dia 12 de fevereiro, a ADPF foi julgada e aprovada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no entanto, segundo a Conaq, o voto favorável não contempla todas as demandas pautadas e a luta agora é pela efetivação das demandas aprovadas por parte do poder executivo. O prazo para o governo federal apresentar e cumprir tal plano era de 30 dias, porém até o momento nenhum plano foi anunciado.

“O governo Bolsonaro é um governo do desastre. É um governo da morte. É um governo genocida”, finaliza Givânia Silva, uma das coordenadoras da Conaq e Quilombola da comunidade Conceição das Crioulas, se referindo a irresponsabilidade do governo, à falta de diálogo e o aumento do discurso de ódio ao povo quilombola.

Quilombola, acesse a cartilha da Conaq com orientações relacionadas a Covid-19 e ao Auxílio Emergencial: Clique aqui. Dúvidas sobre quem pode vacinar ou não? Clique aqui.

Deixe uma resposta

scroll to top