Quando Lan me leva a Lélia ou uma carta para Martinho

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Por: Angélica Ferrarez de Almeida

Doutora em História Política – UERJ e Pesquisadora do grupo de Pesquisa Multi Institucional

Recentemente tomei um susto ao ver a capa do álbum: “Rio: só vendo a vista” do compositor, sambista e intelectual Martinho da Vila. Estava diante do último projeto visual do caricaturista italiano Lan (1925 – 2020). O álbum de Martinho é mais uma de suas preciosidades e uma Ode ao Rio de Janeiro. Na capa aparecem de costas duas mulheres negras hiperssexualizadas, as famosas “mulatas” no imaginário social, observando a Zona Sul da cidade com sua “bela natureza”, representada pelo mar, a cidade organizada em prédios e uma montanha que também é a silhueta de outra mulher. Esta última é uma mulher montanha que deitada sobre a cidade exibe um traço fraco no rosto e um traço forte na bunda. 

Observar esta capa no ano de 1970 talvez não tivesse tanto impacto quanto agora. Não que o projeto de Lan não vá na contramão de todo movimento que mulheres negras vem fazendo desde antes da década de 70 até. E olha que durante este tempo Lan fez capas para muitos álbuns de diversos artistas cuja tríade samba, mulata e cidade estiveram presentes.

Interessante esta tríade do olhar do gringo, sim, estamos falando de um artista italiano, criado no Uruguai e que se apaixona pela cidade do Rio ou seria por este imaginário da “mulata”?. Esta mulher que ascendeu na cadeia social das mulheres negras com a profissão mulata. Profissão que rendeu e rende muito pouco para as próprias mulheres, mas que foi e é rentável para o mercado do turismo, do carnaval, do futebol, claro, antes da chegada da “Maria Chuteira” que são, em sua maioria, mulheres loiras. Enfim, a “mulata” rendeu muito na construção do mito da democracia racial, por exemplo, quando na projeção do Brasil como o país do carnaval, do futebol, do povo acolhedor, da “bela natureza”, onde se plantando tudo dá, também se desenhou a ideia da “mulata tipo exportação”.

Desenhada por Di Cavalcanti, eternizada nas marchinhas de Sargentelli, ele que, inclusive, era amigo do caricaturista Lan. De João Roberto Kelly a Lamartine Babo, ela é a “mulata bossa nova”, cujo “cabelo não nega”, “mas como a cor não pega, mulata, mulata, eu quero seu amor.” Objeto do desejo, “animalizada”, ela pode ser tanto uma tigresa, uma leoa ou uma montanha, “exotizada”, “sexualizada”, “erotizada”, esta mulher negra entronizada na categoria “mulata” preencheu as fantasias dos sujeitos brancos e foi, também, por eles idealizada.

‘A Mulata em sua obra’ – Di Cavalcanti

A literatura e a teledramaturgia também contribuíram muito neste movimento de erotização de mulheres negras. Em Jorge Amado ela é a personagem “Gabriela”, é cravo e canela, aguça os sentidos do paladar. Em Aluísio Azevedo no “Cortiço”, ela é “flor de manjericão”, convocando sempre as experiências do sentido. Mas é no teatro do carnaval, a arena privilegiada de atualização da categoria mulata, como bem já dizia Lélia Gonzalez, lá nos idos de 1983.

 “Todos sob o comando do ritmo das baterias e do rebolado das mulatas que, dizem alguns, não estão no mapa”. “Olha aquele grupo do carro alegórico, ali. Que coxas, rapaz”. “Veja aquela passista que vem vindo; que bunda, meu Deus!”.

Pois é na passista que a “mulata” se acaba. Neste corpo-desejo, corpo-objeto, corpo-espetáculo. Nas imagens que só apelam a sexualidade e não representam a subjetividade de mulheres negras, mas sim representam o imaginário branco do que é ser negra.

Quando vi a capa do álbum de Martinho, entendi que era o projeto artístico de um homem branco, até porque conheço a assinatura e o traçado de Lan. A questão é que entre Lan e Lélia, fico com Lélia na tentativa de desestruturar ou de fazer pensar as intenções por trás das imagens. Um grande combate através da produção de imagens está acontecendo na arena de desarticulação do racismo. E deslocar as gastas imagens nas quais mulheres negras foram confinadas, implodindo o imaginário social de imagens que restitui em cidadania, direito à produção de subjetividade e humanidade é um dos passos que tem movido a luta de mulheres negras.

Como estudiosa do universo do samba, considero um dos valores civilizatórios desta grande escola, o samba, o respeito e a reverência aos mais velhos. Costumo dizer que no universo do samba, “nossos passos vêm de longe”, não é só um bordão, é uma prática levada a sério. Mas a perspectiva geracional também é um ponto importante, afinal de contas na transmissão do conhecimento, o mais novo é uma pessoa chamada à responsabilidade. Por isso, peço licença ao meu mais velho, Martinho, para apresentar o desconforto das sementes de Lélia. E, como diz na linguagem do samba, humildemente… 

Angélica Ferrarez – Doutora em História Política – UERJ e Pesquisadora do grupo de Pesquisa Multi Institucional

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