Qual foi a piada?

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Por Samanta Lopes*

Imagine a cena: um grupo de WhatsApp com 20 estudantes, de perfis diversos e de faixa etária entre 16 e 24 anos. De repente chega uma postagem – a imagem de um homem branco, perto dos 40 anos, com cara de assustado, sentado na cama ainda com as cobertas sobre as pernas e a frase: “Quando você acorda e percebe que esqueceu de renovar o seguro do carro da sua esposa”. Fiquei me perguntando: qual foi a piada?

O racismo e o machismo recreativo ainda estão em alta nos redutos jovens – Foto: Freepik

O emitente tem 17 anos. Na sequência, risos e emojis, até que faço duas perguntas, e agora elas também são para você que está lendo esse artigo:você sabe o que é falácia? Sabe o que é sexismo? Calma! Não precisa ficar com dó do estudante, nem revirar seus olhos! Vamos por partes.

No Brasil, a licença para usar o humor para justificar atitudes preconceituosas diversas é algo comum. Lembra da sua infância? Com certeza vai se lembrar de si ou de alguém que sempre dava um jeito de fazer piada com os temas mais corriqueiros, com as características de outras pessoas. Enfim, o repertório parecia não ter fim e algumas piadas, inclusive, te faziam rir.

Há anos a arte imita a vida, e o teatro brasileiro tem em seu casting de artistas muitas pessoas que se tornaram excelentes em improvisar piadas, e o formato de apresentação até ganhou um nome na década de 1950/1960: o stand-up comedy, ou comédia em pé, apresentada por uma ou mais pessoas em pé, realizando performances em um palco sem muitos ou nenhum insumo, como mobílias ou cenários.

Sobre o palco, a pessoa precisa “criar” falas cômicas, algumas vezes com temas determinados, como é o caso de Diogo Almeida, que faz “piadas” sobre o cotidiano e os hábitos dos educadores em suas rotinas, geralmente abordando dores sociais, como política, traição, características físicas, comportamentais, entre outros, ou temas livres.

Quando vi o post do WhatsApp citado acima imaginei imediatamente a cena descrita, e na hora estranhei. Conforme as perguntas que coloquei em seguida, eu sabia que o estudante estava propagando uma falácia. Explico: quem é da área de seguros, ou conhece um pouco sobre o segmento, sabe que as apólices de mulheres chegam a ser 23% mais em conta do que as dos homens, inclusive na mesma faixa etária, porque elas causam menos acidentes de alto risco, ou seja, havia um raciocínio errado com aparência de verdadeiro, que propagava uma falácia sexista, e mascarava uma atitude de discriminação fundamentada no sexo.

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Puxa! Então, não se pode mais rir de piadas? Essa não foi a intenção, mas colocar as perspectivas no lugar devido, sim. Os jovens estavam rindo de uma piada que colocava a mulher como “perigosa”. Lembra da frase popular: mulher no volante, perigo constante?! Ela precisa ter o carro segurado como premissa. Se desdobrarmos essa atitude, vemos que a ideia dos jovens era a de que a mulher é uma motorista inferior, quando há anos, dados comprovam que elas desempenham esse papel muito melhor do que a maioria dos homens. E mais um detalhe importante: inclusive as mulheres no grupo riram.

Estamos tão acostumados com piadas sexistas que não filtramos as que recebemos. Tudo parece normal, no entanto, essa “falácia” de gênero inferior ou menos competente manteve as mulheres longe de empregos, como motoristas de caminhões, empilhadeiras, entre outros veículos, impedindo que trabalhassem no segmento de transporte, algo conquistado há bem pouco tempo. Por exemplo, a primeira mulher operadora do metrô de São Paulo, Maria Elisabeth de Oliveira começou a trabalhar em 1986, quase 20 anos depois da inauguração desse meio de transporte na cidade.

Há algum tempo uma pessoa que conseguia fazer piada de quase tudo era considerada um talento. Hoje, muitas pessoas das mídias que se propagam por meio do digital, principalmente, ainda usam do humor como ferramenta de trabalho. No entanto, precisamos parar de transformar em piada a “dor dos outros”. São as piadas que geralmente reforçam estereótipos e causam muitos danos, porque são justificadas pela sociedade como algo que todo mundo conhece, ri, e passa adiante.

Usar de um tom levemente irônico, sarcástico ou até mesmo ácido para fazer as pessoas rirem é parte da cultura social, inclusive é uma saída muito útil quando estamos em uma situação que nos deixa sem graça, ou quando cometemos uma gafe. Então, usar a piada como escape, quebra-gelo ou “gancho” para engajar um grupo é válido; o cuidado recomendado é perceber como essa piada será construída.

Aqui, seguem algumas dicas para saber se a brincadeira é desrespeitosa ou não:

  1. Você faria esse tipo de piada com alguém que gosta e respeita?
  2. Você falaria frente a frente com a pessoa que é alvo da sua fala, com a certeza de que ela não ficaria machucada?
  3. Sua piada reforça algum tipo de preconceito?
  4. Sua piada promove exclusão ou reduz algum grupo identitário silenciado?
  5. Sua piada cria um espaço de medo, vergonha, mal-estar, ou qualquer sentimento ruim nas pessoas das quais está falando?

Se responder SIM a qualquer uma dessas perguntas, melhor não fazer piada. E para aqueles que sabem fazer do riso uma ferramenta de melhoria para o mundo.

*Samanta Lopes é coordenadora MDI da um.a #DiversidadeCriativa, agência de live marketing

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